O Instituto Lexum divulgou nesta semana uma carta aberta criticando a “Carta em Defesa da Soberania”, lançada pela Faculdade de Direito da USP no dia 25 de julho.
Assinada por juristas, profissionais liberais e cidadãos, a nova carta acusa o evento da São Francisco de instrumentalizar o conceito de soberania com fins político-partidários.
O documento afirma que defender a soberania nacional é legítimo, mas utilizá-la como escudo contra qualquer crítica externa seria transformar o princípio constitucional em um “álibi de autossuficiência moral”.
A carta é assinada por nomes como André Marsiglia, Rafael Nogueira, Rodrigo Constantino, Rodrigo Marinho, entre outros.
Segundo os autores, a verdadeira soberania está vinculada ao respeito às liberdades individuais, à justiça e à prestação de contas, inclusive no plano internacional.
A crítica também mira o silêncio da USP e de outras entidades jurídicas diante de ações controversas do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral.
O texto menciona casos como o “inquérito do fim do mundo”, a prisão de manifestantes, a censura de perfis nas redes sociais e a criminalização da crítica sob o rótulo de desinformação.
“Se há algo que fere a soberania do Brasil, não é a crítica vinda de fora. É o autoritarismo que brota de dentro – e o silêncio cúmplice de quem só se indigna quando lhe convém”, diz um dos trechos.
A carta também questiona se o posicionamento da universidade estaria motivado por interesses institucionais ou conveniências políticas. Além disso, alerta para o risco de confundir a soberania com a imunidade do poder estatal frente à lei.
Para os signatários, o que compromete a soberania não são as sanções ou críticas internacionais, mas o abandono dos princípios constitucionais dentro do próprio país.
“Carta Aberta à Faculdade de Direito do Largo São Francisco
Soberania Não é Manto Para Impunidade.
No dia 25 de julho do corrente ano, a Faculdade de Direito do Largo São Francisco promoveu, em seu Salão Nobre, um evento e manifestação em torno da chamada “Carta em Defesa da Soberania”, reunindo professores, juristas e políticos. A presente Carta Aberta é uma resposta não apenas a esse episódio, mas também uma crítica à postura recorrente da instituição nos últimos anos — uma postura que, a nosso ver, tem se revelado partidária e enviesada, ainda que revestida do discurso de defesa de princípios universais.
Nós, signatários desta missiva, oriundos das mais diversas áreas — juristas, advogados, economistas, jornalistas, empresários, profissionais liberais e formadores de opinião — manifestamos, por meio desta, nossa perplexidade e inconformismo diante do uso instrumental de conceitos como soberania e democracia para fins ideológicos e seletivos. Eis, pois, a nossa mensagem.
Reivindicar soberania é legítimo. Mas brandi-la como escudo retórico contra qualquer forma de crítica ou responsabilidade externa é transformar um princípio constitucional em álibi de autossuficiência moral. A recém-anunciada “Carta em Defesa da Soberania”, subscrita por instituições públicas e setores da sociedade civil organizada, e encabeçada pela São Francisco, padece exatamente dessa confusão: invoca a soberania como se ela fosse atributo do Estado, e não limite do seu poder.
Soberania, em uma república constitucional, não é sinônimo de imunidade política, nem de autoridade moral incondicionada. Tampouco é o direito de violar direitos. A soberania que merece respeito internacional é aquela que nasce da fidelidade a princípios universais – liberdade, justiça, igualdade perante a lei – e não da negação deles em nome de um “projeto de nação” tão vago quanto impositivo.
A Carta parte da premissa de que o Brasil está sendo vítima de uma “intromissão externa” indecorosa. Mas o que se rotula como intromissão é, na verdade, o exercício legítimo da crítica democrática e da responsabilização internacional quando um Estado, qualquer que seja, se afasta dos seus compromissos com os direitos fundamentais e com a lisura institucional. As nações não são ilhas morais. A soberania, nos marcos do direito internacional contemporâneo, convive com deveres que transcendem fronteiras: dever de proteger, dever de respeitar, dever de prestar contas.
Em tom veemente, a missiva critica uma pretensa violação aos princípios da independência nacional e da não-intervenção, sem, porém, especificar em que medida as sanções americanas teriam nos tornado menos autônomos, e teriam nos sujeitado a algum tipo de violência efetiva, grave ameaça, ou arbítrio. A rasura da argumentação se evidencia da mera observação dos fatos, pois nosso território não foi invadido, nossas autoridades não foram sequestradas por nação estrangeiras, e nossos poderes seguem funcionando como bem entendem.
Sanções econômicas são assuntos pertinentes à política internacional, e, nessa qualidade, devem ser negociadas entre os países envolvidos pela via diplomática, e não mediante manifestações de tribunais, da OAB ou de grupos de juristas. Até porque, sendo a imposição de tarifas e a cassação de vistos prerrogativas dos EUA no exercício de sua própria soberania, bravatas de togados e do seu entorno soam como uma caricatura de quixotismo, tão despropositadas quanto inócuas. Assim, em vez de bradarem contra deliberações soberanas de outras nações, que, reitere-se, não comprometeram o funcionamento das nossas instituições, os signatários da carta deveriam voltar os olhos para as anomalias que vêm marcando a atuação destas.
Contudo, percebe-se um silêncio histórico dessas mesmas entidades que agora se erguem em defesa da soberania. Onde estavam quando o STF instaurou o inquérito sem vítima, sem provocação, sem Ministério Público – o inquérito do fim do mundo? Onde estavam quando se rasgou o princípio da legalidade para sustentar prisões políticas? Onde estavam quando Débora Rodrigues, uma cidadã sem antecedentes, foi condenada a 14 anos de prisão por escrever “perdeu, mané” com batom na estátua da Justiça? Onde estavam quando Clériston Pereira da Cunha, o Clezão, morreu na prisão, após ser preso apenas por portar um cartaz de protesto, e após sucessivos pedidos de liberdade provisória, devido a problemas de saúde graves, pedidos estes ignorados pelo Ministro Moraes, aliás, professor titular desta casa? Onde estavam quando se calaram jornalistas, foram censurados perfis, e criminalizada a crítica sob o manto da “desinformação”? Onde estavam as vozes do “projeto de nação” quando o Estado transformou liberdade de expressão em concessão discricionária? Frente à reiteração de violações à intranscendência da pena, à individuação das condutas, à legalidade estrita, prévia e escrita, ou mesmo às regras basilares do juiz natural, onde repousavam os que agora despertaram?
Cumpre, todavia, um esclarecimento: dentro do próprio Largo de São Francisco há docentes, servidores e estudantes que genuinamente prezam pelo Estado Democrático de Direito, pelas liberdades fundamentais e pela verdadeira soberania. Esta carta, porém, dirige-se à Faculdade em sua dimensão institucional, pois foi nesse plano que, tal como aconteceu com a “Carta pela Democracia” de 2022, a Escola subscreveu um documento de nítido viés político-partidário, ignorando os abusos então já praticados pelo STF e pelo TSE contra apenas um dos polos do espectro. Essa seletividade, além de revelar desonestidade intelectual, perpetua divisões e desvia o debate dos reais desafios que nos cabem enfrentar.
A narrativa da “soberania atacada” busca desviar o foco do verdadeiro ponto sensível: a erosão das garantias individuais, a captura de instituições e a instrumentalização política da legalidade. A mesma carta que invoca o direito à ampla defesa e ao devido processo ignora seletivamente os sinais de abusos de poder e de disfunções estruturais no sistema de justiça. Mais que isso: transforma qualquer tentativa externa de escrutínio – jurídico, político ou diplomático – em ameaça à pátria. Nesse tipo de discurso, toda discordância vira traição. Todo controle vira agressão. Toda crítica é colonização.
A lógica subjacente é perigosamente coletivista: o povo se confunde com o Estado, a Constituição se reduz à vontade majoritária, e os direitos individuais se tornam condicionais à estabilidade institucional. Mas repúblicas não se medem pela unidade de seus slogans, e sim pela liberdade de seus dissensos. O Estado de Direito não floresce onde a legalidade é tratada como monopólio da maioria ou como blindagem contra responsabilização.
A verdadeira soberania – aquela que merece defesa – é a que reconhece que o poder político deve obediência aos direitos dos indivíduos, e não o contrário. Não há autonomia nacional legítima onde o cidadão é tratado como súdito, onde a crítica é demonizada como traição, e onde a Constituição é convertida em peça cenográfica para justificar o império de quem a manipula.
Se há algo que fere a soberania do Brasil, não é a crítica vinda de fora. É o autoritarismo que brota de dentro – e o silêncio cúmplice de quem só se indigna quando lhe convém. Deixamos de ser plenamente soberanos pelo menos desde 2019, o fatídico ano da oficialização dos inquéritos de ofício, que se iniciaram não contra algum político arrebatador de paixões, mas contra meios de comunicação indesejados, além das prisões à margem do devido processo legal e de todos os abusos correlatos. Em sua miopia, os signatários da carta da USP preferem não enxergar que só tornaremos a ser soberanos se, e quando retomarmos o primado da Constituição e das leis, em detrimento dos caprichos dos detentores do poder.
E qual seria a razão desta miopia? Poderia se conceber que juristas da mais alta monta, professores ou egressos da mais prestigiada e tradicional faculdade do país ignoram princípios fundamentais do Direito e das relações internacionais? Ou o motivo seria uma questão mais pragmática, talvez até mais desconfortável de se admitir? Seria possível que, ao se omitir diante dos desmandos e abusos constantes, esses juristas estejam, na verdade, apenas preservando um espaço que lhes é conveniente? Trata-se de uma pergunta, não de uma afirmação. Afinal, quando a preservação do status quo e dos interesses institucionais se torna a prioridade, os princípios do Direito e as relações internacionais podem se tornar detalhes secundários, facilmente ajustáveis conforme o cenário. Quando se coloca outros interesses acima da verdade e da justiça, a soberania deixa de ser uma questão de princípio e passa a ser um meio de preservar privilégios. Raymundo Faoro já nos alertava sobre essa transformação: a profissão jurídica, que deveria ser a guardiã da justiça, acaba se tornando servil ao poder.
São Paulo, 28 de julho de 2025”.
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