Seria a propriedade um direito inviolável ou não? O governo tem o direito e a capacidade de tomar terrenos e distribuí-los corretamente?
Em torno dessas e outras questões acontece o debate a respeito da reforma agrária, uma das políticas mais controversas do Brasil.
Entenda o que é a reforma agrária, como é aplicada no Brasil e o debate ao redor do tema.
Segundo o Dicionário Online de Português, reforma agrária é a:
"reorganização da estrutura agrícola de um país ou região, através de medidas que buscam equilibrar e promover a melhor distribuição de terras, cumprindo princípios de justiça social, desenvolvimento rural sustentável e crescimento da produção".
Segundo a legislação brasileira vigente, a reforma agrária:
"visa promover a melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade.
Esse projeto busca criar um sistema de relações entre o homem, a propriedade rural e o uso da terra", diz o Estatuto da Terra, Lei nº 4.504/64.
Embora o texto tenha sido aprovado em 1964, a reforma agrária passou a ser concretizada no Brasil na década de 90, afirma o professor Rodolfo Alves Pena.
Alguns dos pontos que o Estatuto busca promover são:
O Brasil aplica políticas de reforma agrária desde a instituição da Nova República, através de uma legislação presente na Constituição de 1988 e no Estatuto da Terra.
Segundo o artigo 184 da atual Constituição:
Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei" (Constituição da República Federativa do Brasil/1988).
O órgão governamental responsável por aplicar a reforma agrária no país é o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Existem 29 superintendências regionais e 49 unidades avançadas do órgão espalhado pelo país, além de órgãos estaduais que também trabalham pela reforma agrária no Brasil.
Analisando esse cenário, muitas pessoas afirmam que isso é algo injusto, enquanto outras afirmam que o Brasil precisa realizar mais ações que reforcem a reforma agrária no país. Quem está certo?
A reforma agrária é um debate que acompanha a humanidade há séculos. Embora não fosse necessariamente utilizado o nome reforma agrária, políticos da Antiguidade debatiam a licitude e a necessidade de se redistribuir terras agrícolas de seus países.
Um dos principais exemplos é a disputa de Sêneca, filósofo e político romano, com Lívio Druso e as propostas dos irmãos Graco, tribunos da plebe, aponta a historiadora Maria Luiza Corassin em seu livro A Reforma Agrária na Roma Antiga. No século II antes de Cristo, os romanos já se perguntavam:
É justo e necessário realizar uma distribuição estatal das terras agrárias?
Para Lívio Druso e os irmãos Graco, é justo e necessário que os governos realizem reformas agrárias. No período em que os irmãos eram políticos romanos, muitos camponeses foram lutar contra Cartago.
Os soldados camponeses tinham que contribuir financeiramente para se manter durante a guerra, o que os empobreciam quando voltavam para suas propriedades, afirma o historiador Adrian Goldsworthy no livro The Roman Army at War. Muitos tinham que vender suas terras para latifundiários.
Observando isso, os irmãos Graco defendiam que o governo de Roma não permitisse que uma pessoa possuísse mais de 120 hectares. Eles acreditavam que seria justo repartir parte das propriedades que ultrapassassem essa quantia, distribuindo o excedente para os mais pobres.
Após esse episódio, a reforma agrária não obteve tanto destaque ao longo da história. Não existem registros de grandes feitos em prol da distribuição estatal de terras após a disputa dos irmãos Graco com o Senado romano.
Isso mudou na Idade Moderna com a Revolução Francesa e com a Revolução Vermelha na Rússia, dando destaque ao tema novamente.
Vladimir Ilich Ulianov, mundialmente conhecido pelo seu pseudônimo "Lênin", foi um dos principais defensores da reforma agrária do mundo moderno, mostra Orlando Figes no livro A People's Tragedy: The Russian Revolution 1891-1924.
A adoção da cosmovisão marxista fez com que Lênin acreditasse que os proprietários são exploradores, enquanto os camponeses eram explorados:
"A existência da propriedade latifundiária da terra na Rússia condena inexoravelmente a massa imensa da população da Rússia, o campesinato, à miséria, à vassalagem e ao embrutecimento, e todo o país ao atraso em todas as esferas da vida.
A necessidade de abater todas estas barreiras antiquadas e nocivas, de «tirar as cercas» da terra, de reestruturar todas as relações da propriedade da terra e da agricultura constitui a base material da aspiração do campesinato à nacionalização de todas as terras no Estado" (trecho inicial do texto Resolução Sobre a Questão Agrária, de Lênin).
Karl Marx não tratou estritamente sobre o tema, foi Lênin que trouxe a questão para as pautas comunistas, já que seu país era predominantemente rural, diferente do país de Marx, a Inglaterra pós-Revolução Industrial.
Na doutrina de Lênin, ninguém deveria possuir propriedade alguma, muito menos terrenos produtivos, essa incumbência deveria ser exclusiva do Estado durante o governo socialista para depois surgir a sociedade comunista, também sem propriedade privada.
Seguidores do revolucionário russo também deram ênfase ao tema. Alguns exemplos são: Che Guevara; Fidel Castro e Florestan Fernandes.
Para João Pedro Stedile, um dos fundadores e atual chefe do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST):
“No passado, a democratização da propriedade da terra foi o sustentáculo do desenvolvimento das forças produtivas. Nos Estados Unidos emergiu uma burguesia industrial no norte, e eles perceberam que o desenvolvimento do capitalismo é incompatível com a escravidão, porque os trabalhadores escravos não têm renda.
Quando Lincoln percebeu que ia ganhar a guerra, ele decretou uma lei de reforma agrária com o apoio do Congresso. O nome em inglês seria o direito de habitação.
Todo cidadão que morasse nos Estados Unidos, todos, tinha direito a ter 100 acres, que equivale mais ou menos a 67 hectares, ou seja, você quer ir lá trabalhar na terra? O estado garante 67 hectares. No entanto, você tinha que morar e trabalhar”, disse em entrevista à TVT.
O Ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar do governo Lula de 2023, Paulo Teixeira, afirma que a reforma agrária foi praticada por todos os países capitalistas por ser uma prática inerente a esse sistema de mercado.
Os defensores da reforma agrária no Brasil argumentam que é injusta a distribuição de terras no país como é hoje. Segundo o IBGE, 1% dos proprietários de terras possui quase metade de todas as terras produtivas.
Uma das justificações utilizadas para defender a reforma agrária afirma que os atuais donos de terras são descendentes dos proprietários de capitanias hereditárias.
Eles e seus descendentes exploraram outros brasileiros que hoje não possuem terras, sendo lícito partilhar suas propriedades, na visão dos defensores da reforma agrária.
Roberto Campos, um dos principais defensores do liberalismo no Brasil, foi favorável a uma reforma agrícola que não acabasse com a propriedade privada, mas que auxiliasse aqueles que têm muitas terras a ajudarem os que não tem nada ou muito pouco, disse no programa Roda Viva em 1997.
Ele foi um dos principais elaboradores do Estatuto da Terra, Lei nº 4.504/64, elaborada e promulgada em 1964, no início da ditadura militar.
Bruno Perini, engenheiro e educador financeiro, afirma que o filósofo Sêneca estava certo na disputa contra Lívio Druso e as políticas dos irmãos Graco.
Bruno defende que não é justo que o governo tome terras da população, pois isso seria uma interferência no direito à propriedade privada e no poder de escolha popular realizado através do livre mercado.
O sistema capitalista defende que os preços e a quantidade dos bens e produtos são decididos de forma natural de acordo com a vontade e necessidade da população, como escreveu o economista Ludwig Von Mises no livro As Seis Lições.
Quando o governo interfere nessa esfera, acontece uma quebra inorgânica no mercado.
Essa quebra faz com que os bens e serviços que a população realmente deseja possam deixar de serem produzidos e/ou subam de preço. Foi o que aconteceu na Venezuela, em Cuba e na África do Sul, aponta Bruno. Os países ficarão mais pobres após as intervenções estatais.
Um exemplo sobre um possível problema na aplicação da reforma agrária pode ser o seguinte: se o governo tomar uma fazenda de um grande produtor de milho para dividir entre diversas famílias carentes, elas passarão a produzir produtos de subsistência, não mais milho.
Quando chegar novamente a estação de colheita do milho, o vegetal pode faltar para a região que o fazendeiro destinava seus produtos, não conseguindo abastecer os mercados de uma cidade e até mesmo não conseguindo produzir ração para animais, o que faria faltar carne e outros produtos diferentes, como em um efeito dominó.
Caso a fazenda do latifundiário de milho estivesse vazia, ele poderia estar se preparando para produzir soja e arroz em um futuro próximo devido às necessidades de mercado analisadas por ele e sua equipe.
Se o governo tomar suas terras e distribuir para famílias carentes, é provável que nem elas nem o governo perceberão as necessidades da população que o agricultor especialista percebeu, podendo levar a faltar itens básicos no mercado.
Bruno Perini é contra a reforma agrária porque afirma que os especialistas saberão o que é necessário para suprir as necessidades orgânicas da população, o que nem o governo nem as famílias carentes conseguirão fazer em grande parte dos casos.
Roberto Campos, economista e ex-deputado federal, afirmou algo semelhante de acordo com a experiência prática que teve no Brasil.
Segundo ele, o governo brasileiro foi ineficiente na aplicação do Estatuto da Terra, acabando por não utilizar os impostos progressivos para a reforma agrária, meio primário segundo a lei, mas sim, a desapropriação de terras, meio que deveria ser utilizado apenas em casos excepcionais segundo a legislação.
Mesmo com o governo autorizando a reforma agrária, muitas famílias continuam sem terra devido a ineficiência do governo. Roberto afirmou no Roda Viva que o Estatuto da Terra foi tomado por gestores com mentalidade anticapitalista, desfavorecendo empresários e produtores do ramo da agricultura e tornando as ações do governo ineficientes.
Esses fenômenos foram amplamente tratados por economistas da Escola Austríaca de Economia, como o ganhador do Nobel de Economia, Friedrich Hayek. Os economistas apontam 3 problemas principais relativos a intervenção do Estado na economia, que podem ser aplicados nos argumentos desfavoráveis a reforma agrária:
Para o Papa Leão XIII:
"[ ... ] como é fácil compreender, a razão intrínseca do trabalho empreendido por quem exerce uma arte lucrativa, o fim imediato visado pelo trabalhador é conquistar um bem que lhe pertencerá como coisa própria.
Porque, se ele põe à disposição de outrem suas forças e sua indústria, não é, evidentemente, por outro motivo senão para conseguir com que possa prover à sua sustentação e às necessidades da vida; e espera do seu trabalho, não só direito ao salário, mas ainda um direito estrito e rigoroso a usar deste como entender” (Leão XIII, Encíclica "Rerum Novarum", de 15 de maio de 1891).
A propriedade privada decorre de diversos aspectos da vida humana. Segundo Santo Tomás de Aquino, a propriedade privada não se limita à Economia ou ao Direito, mas passa pelo centro da alma do homem.
Propriedade privada é o direito de posse e usufruto exclusivo de um determinado bem ou espaço (um bem móvel ou imóvel) por uma pessoa.
As pessoas precisam de diversos objetos para viver, tanto para seu lazer quanto para sobreviver. Precisam, também, de um espaço no qual possam habitar e se desenvolver de forma individual.
O homem, diferente dos outros animais, possui muito mais capacidades, com complexidades muito maiores.
Tudo isso se dá pela sua natureza mais complexa, e pela existência de necessidades muito mais elevadas que a dos animais irracionais.
Uma pessoa precisa de estudo, carinho, atenção, amizade e artes. E, para realizar cada uma dessas necessidades, o homem precisa de um bem que a possa satisfazer.
Sem possuir as ferramentas e a matéria-prima necessárias para esculpir, um escultor não consegue realizar sua obra. Sem possuir um livro sobre o assunto que deseja aprender, a pessoa não alcança o conhecimento.
E, principalmente, sem uma casa e uma propriedade onde possa descansar e satisfazer suas necessidades mais básicas, o ser humano não consegue alcançar a realização de suas capacidades mais elevadas.
A propriedade privada estabelece um nexo entre as aptidões do ser humano e o que ele necessita.
Cada pessoa precisa de uma quantidade de alimento destinada apenas para si para satisfazer sua fome. E, justamente por possuir necessidades que só podem ser realizadas individualmente, o ser humano precisa de propriedades privadas.
Se a mesma peça de roupa tivesse mais de um dono, haveria conflitos e um dos donos ficaria sem poder usá-la.
Ainda, cada pessoa possui os próprios gostos e o próprio estilo, não sendo possível que uma peça pertença a mais de uma pessoa. Cada pessoa é única, consequentemente, necessita de bens únicos, particulares.
Por ser naturalmente livre, o homem é dono de seu trabalho e do fruto que este produz.
Vendo que o bem que o satisfaz acaba, e sabendo que irá precisar daquela satisfação novamente, as pessoas precisam acumular propriedades para recriar os bens necessários para sua sobrevivência e lazer.
Dessa forma, é necessário que, além de ser dono de bens e de meios de produção, as pessoas acumulem pela poupança o produto de seu trabalho, prevenindo, assim, o futuro. E, de acordo com a circunstância, se torne também dono da fonte de produção.
O fundamento do direito de propriedade privada, em seus vários aspectos, está na natureza racional e livre do homem. Segundo o Direito Natural, o governo não pode violar o direito à propriedade privada de forma excessiva, especialmente se existirem outras terras para doar ou outros meios de ajudar os necessitados.
Bruno Perini aponta o exemplo do governo da Venezuela. Para realizar uma extensa reforma agrária no país, Hugo Chávez estatizou as terras de seu país e as distribuiu para aliados políticos, sendo grande parte deles militares, não agricultores.
Atualmente, o país não possui comida suficiente, o país não produz mais os itens necessários para a sobrevivência dos venezuelanos.
Em 2017, a Pesquisa sobre Condições de Vida (Encovi), realizada a partir da união das principais universidades da Venezuela, afirmou que a média de peso dos venezuelanos diminuiu 11 quilos. Uma das principais causas apontadas foi a falta de comida.
A mesma pesquisa afirmou que seis em cada dez cidadãos do país admitem já terem ido dormir com fome. O sistema de distribuição de alimentos do governo socialista bolivariano não consegue suprir a população.
Uma realidade semelhante ocorreu na União Soviética, em Cuba e na China.
Segundo Adriano Gianturco, professor de ciência política do IBMEC-MG, é comum e provável que políticos favorecerão seus interesses particulares ao chegar no poder. Sua tese está de acordo com a lei de ferro das oligarquias, desenvolvida por Robert Michel.
A lei de ferro das oligarquias infere que qualquer associação, partido e movimento nascem inicialmente com ideais sinceros de seus fundadores, mas gradualmente, conforme o crescimento do grupo, as pessoas precisam se dividir e fazer uma divisão e especialização do trabalho.
Surgem os cargos de presidente, diretor, secretário, tesoureiro, e assim por diante. Uma vez que essas pessoas assumam esses cargos, elas terão interesse em mantê-los, porque os confere posição social, áreas de moderação e outros benefícios.
Na melhor das hipóteses, muitos deles acreditam honestamente que seus objetivos mereçam ser aplicados, e tentam se manter no poder contra outros opositores que querem tomar seus cargos, seja por poder, por status, por interesse privado, ou para aplicar a própria agenda política.
A advogada Maria Diniz Lion ressalta que a reforma agrária poderia começar com o governo doando primeiramente as terras públicas para famílias carentes ao invés de doar terras que já possuem proprietários, como é a reforma agrária brasileira na prática.
A pesquisa "A Quem Pertencem as Terras Brasileiras?", publicada na revista Land Use Policy mostra que 36,1% de todas as terras brasileiras são públicas e 16,6% não são registradas ou têm propriedade desconhecida. Dessa forma, a advogada Maria defende que o governo comece doando suas terras ou terras sem dono, não desapropriando.
No livro O Caminho da Servidão, o economista Hayek discorre sobre a possibilidade da intervenção do Estado na economia, como em uma reforma agrícola.
Para ele, autorizar ações arbitrárias do governo contra o mercado e contra direitos humanos básicos conduziriam o país ao totalitarismo.
Para os economistas liberais clássicos como John Locke e outras escolas, como a Escola Austríaca de Economia, permitir que o Estado ataque um direito natural como o direito à propriedade é um caminho para o totalitarismo.
Para eles, o Estado deve proteger os direitos básicos e naturais, não interferir na economia. Os economistas dão exemplos da União Soviética e até mesmo exemplos recentes como Venezuela e Cuba.
Nesses países, não existe democracia e respeito aos direitos humanos. Quando um dos direitos fundamentais é ferido, todos os outros direitos são relativizados e podem ser feridos.
Em relatório divulgado em agosto de 2022, a ONU apontou que os serviços de inteligência da Venezuela cometeram crimes contra a humanidade sob ordens das esferas mais elevadas do governo para reprimir a oposição.
"Esse plano foi orquestrado no nível político mais alto, liderado pelo presidente Nicolás Maduro", ressaltou em entrevista coletiva Marta Valiñas, presidente da Missão Internacional Independente da ONU sobre a Venezuela.
"Nossas investigações e análises mostram que o Estado venezuelano usa os serviços de inteligência e seus agentes para reprimir a dissidência no país. Isso leva à prática de crimes graves e violações de direitos humanos, incluindo atos de tortura e violência sexual", denunciou Marta.
O relatório apontou que Maduro e pessoas de seu círculo próximo “participaram da seleção dos alvos”.
O documentário Cortina de Fumaça aborda muitos dos principais temas relacionados ao ambientalismo e ao agronegócio brasileiro:
Essas e outras questões foram investigadas no documentário exclusivo da BP.
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