Dr. Marcello Danucalov

Dr. Marcello Danucalov é doutor em ciências (psicobiologia); Mestre em farmacologia; Filósofo Clínico Integral e Orientador Filosófico Familiar.

A tragédia do Rio Grande do Sul vista pelos olhos de um jovem surfista adolescente

Nem sempre é simples transformar filhos adolescentes em homens virtuosos.

Dr. Marcello Danucalov

Talvez você ainda não tenha pensado em uma obviedade que passa despercebida por muitos de nós. Quando somos crianças e perdemos os nossos pais, tornamo-nos órfãos. Quando somos adultos e perdemos o nosso cônjuge, tornamo-nos viúvos. E quando perdemos um filho, por qual nome passamos a ser denominados

Exatamente, caro leitor, não há nome para isso! A perda de um filho é uma das maiores e mais atrozes subversões das leis da natureza, pois somos nós, os pais, que devemos morrer primeiro do que eles. 

Foi isso que quase aconteceu comigo e com a minha esposa no último dia treze de maio. Nosso filho Noa Danucalov ensaiou partir antes de nós. 

Deixe-me dividir com você os detalhes deste acontecimento assustador, mas antes é necessário contar-lhe uma longa história.

No início do mês de maio, o Rio Grande do Sul foi vitimado pela maior catástrofe natural da história do nosso país e, provavelmente, uma das maiores da humanidade. 

Algumas estimativas já apontam que as enchentes produziram o dobro de devastação daquela ocorrida nos Estados Unidos da América por conta da passagem do furacão Katrina

Na medida em que as notícias chegavam até nós, muitos cidadãos abnegados começaram a se mobilizar com intuito de prestar auxílio ao povo do sul. 

Entre esses heróis do cotidiano é necessário lembrar de um grupo de surfistas de ondas grandes conhecidos como os Gigantes de Nazaré, em alusão às colossais ondas surfadas por eles na região da cidade de Nazaré, em Portugal, onde gigantescas são as ondas e gigantes também são aqueles que as domam.

Pedro Scooby, Lucas Chumbo, Alemão de Maresias e inúmeros outros surfistas voluntários partiram para o Rio Grande do Sul levando seus jet skis e, amparados com suas conhecidas habilidades de resgate em condições perigosas e com o precioso auxílio de outros voluntários que se uniram a eles, ajudaram a salvar centenas de vidas de idosos, adultos, crianças e animais. 

Estando na linha de frente, os Gigantes de Nazaré também foram responsáveis por ajudar a documentar as verdadeiras dimensões desta catástrofe

Como muitos deles são bastante conhecidos e contam com milhões de seguidores em suas mídias sociais, suas postagens obtiveram um alcance avassalador, levando a milhões de pessoas as impactantes imagens deste triste e sombrio episódio. 

Contudo, não demorou muito tempo para que uma horda de zumbis parasitas - confortavelmente e covardemente aconchegados no sofá de seus lares – iniciassem uma sequência de ataques a estes heróis voluntários que salvavam vidas e ajudavam a divulgar a crueza da realidade. 

"Pedro Scooby só quer aparecer" bradava um internauta provavelmente assediado por alguma alma penada; "Esses aí só estão buscando likes" retrucava um outro moribundo das trevas; "Eles só querem divulgar a Red Bull" incitava uma criatura advinda das profundezas do nono círculo do inferno de Dante Alighieri etc. 

Façamos então algumas análises sobre a conduta desses nazarenos. Vamos começar pela Bíblia Sagrada em Mateus 6:

1 Guardai-vos de fazer a vossa esmola diante dos homens, para serdes vistos por eles; aliás, não tereis galardão junto de vosso Pai, que está nos céus.

2 Quando, pois, deres esmola, não faças tocar trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam o seu galardão.

3 Mas, quando tu deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita.

4 Para que a tua esmola seja dada em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, ele mesmo te recompensará publicamente.

Não foram poucos os que lembraram de Mateus para "crucificar" publicamente nossos irmãos de Nazaré – que coincidência, não? 

Contudo, o que esses sinalizadores de virtudes inexistentes se esqueceram é que esses rapazes não foram até o Sul para dar esmolas, foram salvar vidas em uma catástrofe que precisava ser divulgada insistentemente. 

Em situações como esta, a divulgação do bem faz bem. A divulgação do bem faz com que o amor se propague mais rapidamente e que o coração de algumas pessoas seja tocado e compelido a também fazer o bem. Foi exatamente isso que aconteceu com nosso filho Noa.

Noa tem somente dezenove anos e é um excelente surfista. Ele já acumula algumas viagens para surfar ondas poderosas pelo mundo, inclusive com algumas temporadas no Hawaii

No dia seis de maio, profundamente tocados pelos feitos dos nazarenos, ele e seu grande amigo Théo, também excelente surfista, hipotetizaram se unir aos seus heróis nos trabalhos de resgate aquático

Em dez horas mobilizaram uma equipe composta por surfistas, veterinários, enfermeiras e, munidos com jet skis e botes infláveis, estavam prontos para partir. É aqui que tem início o meu dilema e o da minha esposa.

Muitos pais nutrem a expectativa de que seus filhos desenvolvam gradativamente um sólido caráter que os permita ter um olhar compassivo e caridoso para as pessoas em situação de vulnerabilidade. 

Muitos também - ainda que não admitam isso publicamente - alimentam fantasias secretas onde seus filhos são reconhecidos como homens virtuosos, quiçá grandes heróis

Mas, quando a vida lhes impõe o imperativo da escolha, sentem a pressão cair sobre seus ombros. Confesso que este foi o meu caso. 

Neste momento já era bem evidente que a situação no Rio Grande do Sul assemelhava-se ao que comumente vemos em guerras, e eu e minha esposa estávamos prestes a permitir que nosso único filho partisse rumo a um cenário incerto e repleto de perigos.

Noa é um menino bom e de grande coração, mas, com seus dezenove anos, ainda não atingiu a plena maturidade, ou seja, ainda há muito o que fazer na educação dele

Evaristo "Kiko" Ferreira, seu técnico de surfe no Hawaii, confidenciou-me ter dois grandes problemas com seus atletas que enfrentam ondas grandes. 

O primeiro é lidar com surfistas que são tomados pelo medo; o segundo é ter que impor limites àqueles que raramente têm medo, ou seja, os temerários sem noção do perigo, meu filho é um exemplo do segundo tipo de problema enfrentado pelo Kiko. 

Eis que tínhamos que tomar uma decisão: permitir ou não a ida do filho a um cenário de guerra

O que você faria? Há riscos tanto em acatar a ida como em negá-la. Na primeira opção, existe até mesmo o risco de morte. Na segunda, a possibilidade do filho nunca mais respeitar nossos conselhos sobre a necessidade de ser caridoso e compassivo, uma vez que o impedimos de salvar vidas em um momento em que as circunstâncias clamavam por atos de doação verdadeira aos que sofriam com a catástrofe. Qualquer decisão seria uma aposta. 

Minha esposa, movida pelo amor materno, foi parcialmente contrária, e eu, com o coração envolto em dúvidas, fui favorável

Os pais do Théo optaram pela não ida do filho, o que acabou sendo bom para a equipe, pois o Théo assumiu o papel de um maestro e ficou nos bastidores orquestrando inúmeras ações burocráticas extremamente necessárias em situações como esta. Noa partiu com seus amigos.

Os dias que se seguiram foram repletos de tensão, tristeza, orgulho, preocupação e medo. Noa diariamente nos enviava áudios onde era possível perceber seus sentimentos e suas emoções ao relatar o cenário desesperador em que atuavam:

"Pai, o cenário é de guerra. É surreal! As pessoas perderam tudo. Há um cheiro de morte por todos os lugares. Estamos navegando em cima de um cemitério. Quando as águas baixarem, teremos a verdadeira dimensão do número de mortes de seres humanos e de animais".

"Está muito frio aqui, muita chuva. Nós ficamos mais de doze horas navegando entre telhados e postes de alta tensão salvando pessoas e animais ilhados".

"É impressionante ver a mobilização do povo para ajudar os necessitados. Eu tenho certeza de que se não fosse a movimentação voluntária e espontânea dos civis, o número de mortes seria muito maior do que já é!".

"Existem certas regiões em que nós não podemos entrar com os jet skis e os botes porque existem bandidos que estão roubando o pessoal que faz os resgates. Eles estão invadindo prédios e casas para roubar o que ainda sobrou, geralmente nos andares superiores. Temos feito alguns resgates com escolta de policiais fortemente armados".

"Alguns resgates são muito difíceis. O frio, os fios de alta tensão, a dificuldade de acesso e a água fétida e contaminada dificultam muito nosso trabalho".

"Pai, nós estamos sendo muito bem tratados por inúmeras pessoas, muitos amigos, muitos bombeiros abnegados, assim como pelo pessoal do SESC que também nos deu abrigo e está cuidando das equipes de resgate".

"Pai, hoje nós salvamos dez pessoas e uns trinta cachorros, foi insano. Estou exausto. Nós saímos da água às nove da noite. Você não imagina o que é navegar entre postes de alta tensão, à noite, resgatando famílias e com medo de sermos atingidos por balas de bandidos mal-intencionados". 

"Pai, existem regiões onde a água subiu quase seis metros. Corre-se o risco de atropelar um poste com o jet ski. Em outras regiões onde a água subiu um metro e meio, não se consegue enxergar os carros submersos e corre-se o risco de bater neles em alta velocidade com o jet ski ou o bote. Toda atenção é necessária". 

"Pai...".

Noa, assim como milhares de voluntários, documentou tudo isso em vídeos que estão disponibilizados em suas mídias sociais. Parte de sua experiência também está relatada no programa Conversa Paralela, da Brasil Paralelo, magistralmente conduzido pelos competentíssimos Arthur Morisson e Lara Brenner

No dia treze de maio, quando eu e minha esposa nos encontrávamos em uma academia de musculação, recebo um direct pelo meu Instagram de uma enfermeira da equipe de resgate:

"Por favor, me responde! Me passa nome completo, RG e CPF do Noa, e carteirinha do plano de saúde".

Imagine o que passou em nossa cabeça ao lermos esta mensagem. Noa tinha tido uma severa hipotermia quando fazia resgates aquáticos na cidade de Canoas e foi levado às pressas em um carro de polícia para um hospital em Porto Alegre, onde chegou quase inconsciente. 

A hipotermia caracteriza-se por uma redução da temperatura central do corpo para 35°C ou menos e pode ser fatal

É uma ocorrência gradativa e geralmente a vítima passa muito tempo com fortes tremores, o que é um indicativo de que algo ruim está prestes a ocorrer. 

No caso específico do Noa, a fase preliminar não foi percebida com clareza devido à liberação de muitas substâncias químicas cerebrais que podem mascarar alguns sinais indicativos de que está na hora de parar. 

Noa colapsou sem passar pelas fases intermediárias da hipotermia. A somatória dos efeitos do estresse acumulados durante uma semana na linha de frente também colaborou com esta ocorrência

Somente quem passou por situações similares sabe que resgatar seres vivos de situações críticas é uma ação que pode obscurecer a nossa prudência, e quando se é um jovem de dezenove anos, este risco pode ser elevado à décima potência. 

Você salva uma pessoa, um animal e, imediatamente, conecta-se com o medo advindo do olhar assustado da vítima. Neste momento, seu cérebro é inundado por diversos neurotransmissores que te colocam em uma situação consciencial raramente sentida

A noradrenalina prepara seu corpo para a ação; a oxitocina concede a você uma forte sensação de compaixão com o próximo; a dopamina te presenteia com o prazer advindo das consequências positivas do seu ato; a endorfina obscurece a sua dor e o seu desconforto e o impele a prosseguir, a não parar, a salvar mais um e depois outro e outro. 

Graças a Deus, Noa sobreviveu. Seu atendimento foi exemplar e muitas pessoas foram responsáveis por isso

Nossa gratidão será eterna. Depois desta ocorrência, obrigamos o Noa a retornar para casa, coisa que ele fez de maneira reticente, mas, até certo ponto, serena.  

Sofremos uma miríade de sentimentos difíceis de serem sintetizados em uma única palavra: orgulho, alívio, tristeza, consternação, compaixão, incredulidade, gratidão, entre outros tantos. 

Podemos agora voltar aos nazarenos, mais especificamente ao Pedro Scooby. Foi ele o que mais sofreu com críticas advindas dos haters que emergiram das trevas com intuito de cancelá-lo

Assim como outros atletas de Nazaré, Scooby é um esportista extremamente bem-sucedido e vitorioso em sua carreira no surfe, abastado financeiramente, seguido por oito milhões e duzentas mil pessoas

É inegável que o rapaz tem uma boa parcela do mundo aos seus pés. É preciso ter uma mente muito perturbada para acreditar que seu desejo de ajudar seres humanos em risco de morte iminente tenha sido movido somente pela busca de likes

Você conhece alguém que busca reconhecimento midiático colocando sua própria vida em risco durante dez dias consecutivos? Você conhece alguém disposto a passar doze horas por dia correndo o risco de ser baleado, de contrair leptospirose nadando em águas fétidas e contaminadas, de ter um membro amputado em um acidente de bote ou jet ski, de ser eletrocutado por um fio de alta tensão submerso, de morrer colapsado pela hipotermia? Eu, sinceramente, não consigo crer nisso.

Luana Piovani, ex-esposa de Scooby e mãe de seus três filhos, insistia em atacá-lo publicamente, concedendo munição para as hordas de zumbis canceladores. 

Luana afirmava – e não podemos nem sequer saber se isso é verdade– que para ir ao Rio Grande do Sul, Scooby teria deixado de levar seus filhos à escola

Quando eu entrei em contato com esta fala, não pude deixar de me imaginar em uma cena bizarra onde centenas de pessoas em risco de morte solicitavam meu socorro e eu retrucava com uma afirmação categórica: "Sinto muito, meus amigos, eu não posso ajudá-los! Tenho que levar meus filhos para a escola". 

Se levar os filhos para a escola é uma obrigação e um dever legal dos pais, também é um dever ético, moral, religioso e legal prestar auxílio àqueles em situação de risco. O Código Penal – Decreto-Lei número 2.848, de sete de dezembro de 1940, versa sobre Omissão de Socorro:

“Art. 135 – Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública.”

E para você, leitor, o que parece ser mais importante em um momento como este? Devemos punir Pedro Scooby? Lembremo-nos que ele dirigiu mais de dois mil quilômetros voluntariamente para ajudar pessoas desconhecidas, mesmo colocando sua vida em risco. 

Fora isso, podemos lembrar dos deveres prima facie, quando uma obrigação que se deve cumprir entra em conflito com outro dever de igual ou maior magnitude. Caso Pedro Scooby tenha deixado de levar seus filhos à escola, esta falta foi necessária para que vidas fossem salvas. Pense com carinho nisso, Luana Piovani.

Não é surpresa dizer que o Noa e toda a equipe que esteve com ele na linha de frente também sofreram com haters desequilibrados

Mas, em um país que prioriza o show da Madonna em um momento em que o Brasil deveria ter se voltado inteiramente para esta catástrofe, atitudes como estas são absolutamente previsíveis.

Deixo com vocês uma das minhas últimas trocas de mensagem com meu filho, quando ele voltava para casa de carro, vindo do Rio Grande do Sul:

"Oi, filho, você está bem? Onde vocês estão? Com quem você está?".

"Oi, pai. Estou com Deus! Pai, enquanto estava no carro dormindo, tive diversos pesadelos. Acordei gritando. Sinistro! Acordei gritando assim: a gente tem que resgatar, acelera o jet ski! Acelera logo!". 

Noa voltou! Noa está bem! Voltou com algumas cicatrizes na alma e, no mínimo, cinco anos mais maduro

Parabéns, filho, te amamos muito!

Parabéns também a toda a maravilhosa equipe.

  • Nairê Karniol Marquez,
  •  Henrique dos Santos Medeiros, 
  • Marcos Roberto da Silva, 
  • Denis Fernando da Silva, 
  • Paulo Roberto Totta, 
  • Flavio Nakagima, 
  • Théo de Camargo Viana, 
  • Enzo Rodriguez Catino, 
  • Marco Aurélio Tomilheiro Júnior, 
  • Bruno Adler Teixeira Tomilheiro, 
  • Gustavo del Carlo Amaral, 
  • André Carrilo, 
  • Victor Hugo, 
  • Thomás Macedo, 
  • Murillo Pina, 
  • Léo Viana,
  • Tainá Viana, 
  • Camila Longhi e
  • Carlos Corniani.

Continuemos ajudando, todos nós. Serão necessários alguns anos para reerguer o Rio Grande do Sul.

Doutor em Ciências (psicobiologia);

Mestre em Farmacologia;

Filósofo Clínico Integral e Orientador Filosófico Familiar.