Henrique Simplício

Doutor em Neurociências, é palestrante, escritor, autor e organizador dos livros "Pedagogia do Fracasso" e "Pedagogia do Sucesso" (volumes 1 e 2) publicados pela editora Ampla.

A Pedagogia e seus inimigos uma crítica à teoria de Paulo Freire

Paulo Freire é um dos poucos autores que conseguiram alcançar um alto nível de influência na educação mundial ao longo do último milênio.

Henrique Simplício

Parte considerável dos pedagogos e demais profissionais licenciados a ensinar na educação básica buscam nos preceitos teóricos e epistemológicos deste autor não apenas fundamentos para avaliar o ensino, mas também utilizam de sua filosofia como um norte entre a política e o desejo de modificar a sociedade

Professores do Brasil e do mundo tratam o trabalho de Freire como uma escritura religiosa pouco aberta a críticas e revisões. Para muitos desses profissionais, o trabalho de Freire ocupa um papel messianico educacional

Parte dessa devoção não é sem propósito, Freire identifica na prática educacional um conceito abrangente que deve corrigir as injustiças e a desigualdade do sistema analisado por ele. Para tanto, a atividade educacional não poderia abrir mão do engajamento moral e político dos educadores

Esse tratamento, está longe de soar estranho para grande parte da formação pedagógica nacional. Pelo contrário, é amplamente aceito pelos profissionais do campo que a política e a educação deveriam andar juntas, afinal, o interesse do professor por um bom ensino abarcaria justamente a política de uma educação de qualidade

Neste cenário, seria possível se perguntar se haveria algum risco ou efeito adverso em mesclar estas esferas. Em um tempo onde a polarização política parece ter ganhado contornos rígidos dentro da sociedade, haveria algum problema em transferir essa discussão para a sala de aula?

O texto de hoje desta coluna tem por objetivo analisar a relação entre os aspectos políticos e educacionais em Paulo Freire tendo em vista o referencial de um dos autores mais citados das ciências humanas e o patrono da educação brasileira. 

Para tanto, na primeira parte da coluna serão apresentados três aspectos importantes que estruturam a teoria do autor sendo eles: 

I) Influências filosóficas; 

II)  Epistemologia do conhecimento; 

III) Papel do Professor.

Na posterior, este trabalho fará uma análise da teoria do autor avaliando as possíveis implicações e riscos existentes na teoria de Freire.

 

I) INFLUÊNCIAS FILOSÓFICAS

Para entender a obra de Freire é preciso compreender que seus objetivos ultrapassam aos de um educador que visa apenas transmitir seus ensinamentos no período destinado dentro de sala de aula. 

Freire se dedicou no estabelecimento de uma filosofia educacional que tentasse, ao mesmo tempo, traduzir as preocupações da sociedade e fornecer uma alternativa aos problemas existentes

Em sua obra mais conhecida, a Pedagogia do Oprimido, os aspectos morais, políticos e educacionais andam juntos. 

Para ele, a luta de classes, inserida dentro da atual sociedade liberal e capitalista de produção, pode gerar resultados nefastos na sociedade e no ensino (Roberts, 2003). 

Durante o seu percurso acadêmico, Freire tenta não separar sua produção teórica dos direcionamentos práticos educacionais contidos na  obra do autor. 

Esta indissociabilidade se revela não apenas por meio de seus esforços educacionais, mas também por meio de suas próprias ações e posicionamentos públicos.

Por outro lado, o homem, que não pode ser compreendido fora de suas relações com o mundo, de vez que é um “ser-em-situação”, é também um ser do trabalho e da transformação do mundo. O homem é um ser da “praxis”; da ação e da reflexão (Extensão ou comunicação, p.28).

Segundo ele, os objetivos de um educador não se restringem à esfera do ensino público ou privado

Para ele, as ideias não devem ser vistas apenas como metas a serem alcançadas, mas também, como produto de uma “necessidade histórica”, fruto de um embate entre opressores e oprimidos

Desta forma, Freire não buscava apenas estabelecer uma metodologia de ensino através de seu método de alfabetização. Também não desejava ser somente um teórico educacional. Freire buscava ser tudo isso, circunscrito em uma filosofia política

A relação entre educação e política está imersa na sua obra. Mesmo em seu método, o pedagogo insere uma etapa onde a inserção destes temas morais, políticos e históricos devem ser trabalhados. 

Em uma de suas biografias, é apresentado que o autor tentava relacionar seus aspectos teóricos e metodológicos através da prática

Desta forma, o professor que buscasse separar os terrenos da política e da educação cometeria um grave erro para o autor, através de uma falsa visão de mundo calcada na neutralidade. Este posicionamento político, não deve ser compreendido como uma opção para o professor que deseja cumprir com seu dever dentro de sala de aula. 

Ao contrário do argumento weberiano que critica a postura do professor que se arroga da sua posição privilegiada dentro de sala para transmitir suas ideias e valores, em Freire é justamente o oposto que ganha destaque. Para ele, o professor não pode nem deve furtar-se ao seu dever. 

Ele deveria apresentar sua opinião sobre os elementos históricos e políticos que ocorrem dentro e fora da escola.

Porque, dirá um educador reacionariamente pragmático, a escola não tem nada que ver com isso. A escola não é partido. Ela tem que ensinar os conteúdos, transferí-los aos alunos. Aprendidos, estes operam por si mesmos.

Minha presença de professor, que não pode passar despercebida dos alunos na classe e na escola, é uma presença em si política.

Outro saber de que não posso duvidar um momento sequer na minha prática educativo-crítica é o de que, como experiência especificamente humana, a educação é uma forma de intervenção no mundo.

Em nome do respeito que devo aos alunos não tenho por que me omitir, por que ocultar a minha opção política assumindo uma neutralidade que não existe. Esta, a omissão do professor em nome do respeito ao aluno, talvez seja a melhor maneira de desrespeita-lo. O meu papel, ao contrario, é o de quem testemunha o direito de comparar, de escolher, de romper, de decidir e estimular a assunção desde direito por parte dos educandos.

A defesa clara deste ativismo político pode ser também constatada ao longo de vários momentos da obra do autor. 

Porque não aproveitar a experiência que têm os alunos de viver em áreas da cidade descuidadas pelo poder público para discutir, por exemplo, a poluição dos riachos e dos córregos e os baixos níveis de bem-estar das populações, os lixões e os riscos que oferecem à saúde das gentes. Porque não há lixões no coração dos bairros ricos e mesmo puramente remediados dos centros urbanos?

(Pedagogia da autonomia)

Por outro lado, o homem, que não pode ser compreendido fora de suas relações com o mundo, de vez que é um “ser-em-situação”, é também um ser do trabalho e da transformação do mundo. O homem é um ser da “praxis”; da ação e da reflexão 

(Extensão ou comunicação, p.28).

Freire parece ter uma grande preocupação com uma forma de conhecimento prático ou “atuante” ao longo do processo de aprendizagem. 

Para tanto, seria necessário romper com um modelo extensionista na educação que, através do seus preceitos filosóficos, atuaria prejudicando os alunos durante o processo de ensino. 

Ao longo do seu livro extensão ou comunicação, Freire apresenta alguns termos que seriam aplicados ao que ele representa como um ideário extensionista. Dentre estes significados estão:

“Transmissão; Inferioridade (dos que recebem); Superioridade (do conteúdo de quem entrega); Macanicismo (na ação de quem estende); Messianismo (por parte de quem estende); invasão cultural (através do conteúdo levado, que reflete a visão do mundo daqueles que levam, que se superpõe à daqueles que passivamente recebem)” Extensão ou Comunicação, p.22)

A extensão, que de forma curiosa é hoje um dos pilares das universidades brasileiras, é apresentada por ele como um processo danoso ao ensino (?). 

Educar para o autor não é estender conhecimento a um sujeito que desconhece algo. Esta forma de conceber o conhecimento alienaria aquele que o ouve, eliminando sua autonomia no processo de obtenção do conhecimento.

A ideia da extensão como um processo de invasão cultural é descrita por ele na medida em que o aluno é incapaz de aplicar o conteúdo,  memorizando-o. 

Isso o levará a estabelecer certas críticas ao processo de armazenamento de informações pautados tanto na transferência de conhecimentos, quanto ao ato que ele dará o nome de memorização mecânica. Em seu livro pedagogia da autonomia Freire apresenta:

“O educador que, ensinando geografia, “castra” a curiosidade do educando em nome da eficácia da memorização mecânica do ensino dos conteúdos, tolhe a liberdade do educando, a sua capacidade de aventurar-se. Não forma, domestica. Tal qual quem assume a ideologia fatalista embutida no discurso neoliberal, de vez em quando criticada neste texto, e aplicada preponderantemente às situações em que o paciente são as classes populares. “Não há o que fazer, o desemprego é uma fatalidade do m do século.” (Pedagogia da Autonomia)”
“Não pode haver conhecimento pois os educandos não são chamados a conhecer, mas a memorizar o conteúdo narrado pelo educador. Não realizam nenhum ato cognoscitivo, uma vez que o objeto que deveria ser posto como incidência de seu ato cognoscente é posse do educador e não mediatizador da reflexão crítica de ambos. (Pedagogia do Oprimido).”

Conforme apresentado no trecho anterior, Freire coloca o processo de conhecer algo em conflito com o de memorizar. Em outro momento, ele tecerá fortes críticas a esta ideia ao avaliar a transmissão de conhecimentos e o problema visto por ele associado ao acúmulo de conhecimentos

Para avaliar este problema, Freire descreverá a metáfora bancária. Através dela, ele compara a ação de alguém que armazena dinheiro no banco com o erro epistemológico que leva um educador a depositar e acumular conhecimentos e conteúdos em sala de aula. A isto, Freire chama de uma visão bancária do conhecimento. 

Este processo de ensino “anestesiaria” os estudantes, inibindo sua visão prática e seu poder criativo ao longo do desenvolvimento.

“Enquanto, na concepção “bancária” – permita-se-nos a repetição insistente – o educador vai “enchendo” os educandos de falso saber, que são os conteúdos impostos, na prática problematizadora,vão os educandos desenvolvendo o seu poder de captação e de compreensão do mundo que lhes aparece, em suas relações com ele, não mais como uma realidade estática, mas como uma realidade em transformação, em processo. (pedagogia do oprimido)”

“Assim é que, enquanto a prática bancária, como enfatizamos, implica numa espécie de anestesia, inibindo o poder criador dos educandos, a educação problematizadora, de caráter autenticamente reflexivo, implica num constante ato de desvelamento da realidade. A primeira pretende manter a imersão; a segunda, pelo contrário, busca a emersão das consciências, de que resulte sua inserção crítica na realidade. (pedagogia do oprimido)”

Mais do que uma simples perspectiva de ensino, esta visão bancária refletiria uma visão de mundo enviesada que reflete uma estrutura desigual do sistema capitalista de ensino. 

Para o  autor, adotar esta perspectiva coloca qualquer projeto de ensino sob a mira do fracasso educacional, político e humanitário. Nestes aspectos, o professor deteria um papel de destaque dentro de sala de aula.

III) O PAPEL DO PROFESSOR

Além de transmitir valores políticos adequados, fugindo dos aspectos transmissionais da instrução, caberia ao professor evitar incorrer em erros pedagógicos capazes de prejudicar o ensino, bem como a formação dos alunos.

Para fugir deste processo de ensino, seria necessário para Freire adotar uma postura problematizadora, questionando “criticamente” não só o modo de organização da sociedade mas mesmo a postura do professor perante os alunos durante a tentativa de aprender sobre algo. 

Neste sentido, Freire questiona mesmo a postura de um educador que diz ser responsável por “educar alguém”. Em uma célebre frase, Freire afirma que em uma concepção problematizadora de educação “ninguém educa ninguém - ninguém se educa a si mesmo - os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo” (pedagogia do oprimido). 

Para ele, ao longo da relação de aprendizagem , professor e aluno devem se encontrar em um mesmo nível com o intuito de desbravar e conquistar o conhecimento. Conforme o trecho abaixo, professores que questionassem esse tipo de pressuposto, deixariam claro a existência de um preconceito velado. 

A ideia do “professor transmissor” deveria ser substituída pela do “professor libertador”(p.143) que está no mesmo patamar do aluno, ambos na busca pelo conhecimento.

“Educador-educando e educando-educador, no processo educativo libertador, são ambos sujeitos cognoscentes diante de objetos cognoscíveis, que os mediatizam. Poder-se-á dizer, e não têm sido poucas as vezes que temos escutado: “Como é possível pôr o educador e o educando num mesmo nível de busca do conhecimento, se o primeiro já sabe? Como admitir no educando uma atitude cognoscente, se seu papel é o de quem aprende do educador?”
“Tais indagações, no fundo, objeções, não podem esconder os preconceitos de quem as faz. Partem sempre dos que se julgam possuidores do saber frente a educandos considerados como ignorantes absolutos. De quem, por equívoco, erro ou ideologia, vê na educação dialógica e comunicativa uma ameaça. Ameaça, na melhor das hipóteses, a seu falso saber. (Extensão ou comunicação, pag, 78)”

Conforme o pensamento freiriano, esta abordagem não seria irrealizável,  o professor deveria recusar um discurso fatalista que negasse as projeções de mundo dos alunos através de um olhar pouco otimista perante o desfecho do ensino. 

A utopia é encarnada como uma esperança necessária ao longo da obra do autor. Ao contrário de uma perspectiva corrente que avalia projetos utópicos diante de um idealismo inviável, Freire valoriza os projetos utópicos através de seu anseio da transformação da sociedade.

“O combate em favor da dignidade da prática docente é tão parte dela mesma quanto dela faz o respeito que o professor deve ter à identidade do educando, à sua pessoa, a seus direitos de ser.
É preciso que, ao respeitar a leitura do mundo do educando para ir mais além dela, o educador deixe claro que a curiosidade fundamental à inteligibilidade do mundo é histórica e se dá na história, se aperfeiçoa, muda qualitativamente, se faz metodicamente rigorosa.
O professor autoritário, que recusa escutar os alunos, se fecha a esta aventura criadora. Nega a si mesmo a participação neste momento de boniteza singular: o da afirmação do educando como sujeito de conhecimento”.

Ao longo desta busca pela equivalência durante o processo de aprendizagem, o autor enaltecerá também o papel político dos estudantes na denúncia e no questionamento das instituições, valores tradicionais e das autoridades existentes. 

Considerando o papel das lideranças revolucionárias, o movimento estudantil deteria um destaque ao longo da visão libertadora encabeçada por Freire. Ao exigirem a transformação da ordem existente, caberia aos alunos exigirem o desaparecimento da rigidez entre as relações entre professor-aluno. 

Em um trecho do livro Pedagogia do oprimido, o autor defende que o rechaçamento da velha ordem, calcadas nas hierarquias herdadas:

“Ao questionarem a "civilização do consumo"; ao denunciarem as "burocracias" de todos os matizes; ao exigirem a transformação das Universidades, de que resulte, de um lado, o desaparecimento da rigidez nas relações professor-aluno; de outro, a inserção delas na realidade; ao proporem a transformação da realidade mesma para que as Universidades possam renovar-se; ao rechaçarem velhas ordens e instituições estabelecidas, buscando a afirmação dos homens como sujeitos de decisão, todos estes movimentos refletem o sentido mais antropológico do que antropocêntrico de nossa época. (PEDAGOGIA DO OPRIMIDO)”

Para Freire, professor e aluno deveriam assumir a mesma postura frente ao aprendizado, ambos como aspirantes a conhecedores sem que o primeiro veja o conhecimento do segundo como menor ou limitante. 

Em um outro momento, em seu livro extensão ou educação, o autor deixa claro que o professor não poderia se portar com a autoridade daquele que é visto detendo conhecimento, enchendo os demais com informações e conteúdos. 

Esta noção implicaria em uma visão estreita, que enxerga no aluno como um “depósito” de conhecimentos sem propósito ou pouco significativos.

“Aquele que é enchido por outro de conteúdos cuja inteligência não percebe; de conteúdos que  contradizem a forma própria de estar em seu mundo, sem que seja desafiado, não aprende”.
“Há, inclusive, aquêles que, movidos pela urgência do tempo, dizem claramente que “é preciso que se façam ‘depósitos’ dos conhecimentos técnicos nos camponeses, já que assim, mais rapidamente, serão capazes de substituir seus comportamentos empíricos pelas técnicas apropriadas” p. 45.
“Revelam, indubitavelmente, uma falsa concepção do como do conhecimento, que aparece como resultado do ato de depositar conteúdos em “consciências ôcas”1. Quanto mais ativo seja aquele que deposita e mais passivos e dóceis sejam aquêles que recebem os depósitos, mais conhecimento haverá” p.46.

Assim como a classe proletária em Marx estaria destinada a identificar e corrigir os erros históricos perpetrados pela burguesia, Freire identifica nos oprimidos um caminho para corrigir os erros de uma estrutura desigual que, segundo o autor, fariam parte tanto a educação quanto a política. 

Freire chega mesmo a descrever um movimento de marcha dos oprimidos que não poderia prescindir de uma liderança revolucionária.

Quem, melhor que os oprimidos, se encontrará preparado para entender o significado terrível de uma sociedade opressora? Quem sentirá, melhor que eles, os efeitos da opressão? Quem, mais que eles, para ir compreendendo a necessidade da libertação? Libertação a que não chegarão pelo acaso, mas pela práxis de sua busca; pelo conhecimento e reconhecimento da necessidade de lutar por ela. Luta que, pela finalidade que lhe derem os oprimidos, será um ato de amor, com o qual se oporão ao desamor contido na violência dos opressores, até mesmo quando esta se revista da falsa generosidade referida. (Pedagogia do Oprimido)

Ao longo destes três tópicos foi possível identificar a forte presença da política na obra de Freire. 

Sem sombra de dúvidas é possível afirmar que a prática política respigam tanto na seu embasamento filosófico, epistemologia do conhecimento e nas atribuições do professor em sala de aula.

Por fim, buscaremos estabelecer alguns comentários perante a obra do autor tendo em vista algumas implicações e desfechos teóricos elucidados nestes três aspectos da teoria do autor.

A PEDAGOGIA CONTRA OS INIMIGOS

Através da filosofia de Freire, é possível identificar no autor um forte peso da sua filosofia política ao longo de sua obra. Conforme apresentado, esta influência se arrasta por sua epistemologia do conhecimento e mesmo no direcionamento comportamental da comunidade escolar. 

Na metáfora bancária, a filosofia marxista está presente passando também por alguns elementos de movimentos que, em outras abordagens, tenderiam a atuar naturalmente fora dos limites da escolares. 

Esta elementos da teoria de Freire não devem ser encarados como triviais dentro da filosofia de Freire, tendo em vista que o pedagogo encara esta filosofia como uma ciência que deve intervir tanto no contexto educacional como na reorganização da vida em sociedade

Freire não fornece uma saída ao professor que prefere não entrar na esfera política dentro de sala de aula. Este professor estaria fugindo do seu compromisso. A boa educação é política, e a ciência capaz de avaliar esta educação tem por base o marxismo

Desta forma, a luta contra este sistema não é uma opção, as reformas apenas atrasam e prejudicam o compromisso revolucionário traçado pelo autor.

As contradições começam a surgir diante de sua obra na medida em que, ao mesmo tempo que o autor rechaça a ideia da transmissão de conhecimento, reconhece como um compromisso educacional a aplicação dos seus valores políticos dentro de sala de aula (Simplício e Haase, 2020). 

É justo se perguntar em que medida os aspectos políticos devem se sobressair perante a ideia de fornecer conteúdos e conhecimentos através do processo de ensino instrucional transmitido? 

Hoje, através de estudos independentes, coletados por amostras distintas e mesmo comparando resultados de matérias, é possível ter como referência a importância de métodos instrucionais de ensino (que utilizam a transmissão do conhecimento como base) comparativamente com métodos menos sistematizados.

Não há evidências para se colocar contra a transmissão de conhecimentos, ainda que, de alguma forma, elas pareçam, em um primeiro momento, estar descontextualizadas da experiência do aluno. 

A “libertação” proposta pelo radicalismo de Freire parece depositar nos aspectos políticos de sua obra uma solução prática para o problema do desempenho educacional sem, contudo, apresentar para isso qualquer tipo de resultado que avalie efetivamente como o desempenho dos estudantes poderia ser aprimorados. 

Nenhum tipo de dado estatístico, teste ou metodologia comparativa clara é levantado em algumas das suas principais obras.

Contudo, isso não impede o autor de defender o emprego de medidas convulsivas para contornar os problemas percebidos. 

Assim como em Marx, a fé na proposta socialista parece valer por si a crítica dos dissidentes munidos, segundo o autor, de uma falsa visão de mundo pautada em uma neutralidade e no tecnicismo. 

É curioso pensar em como este radicalismo poderia ser avaliado enquanto um aspecto positivo ou, até que ponto não haveria nenhum risco em fomentar uma filosofia educacional que prega estes valores na escola. 

Vale destacar que não se trata de reconhecer os erros ou problemas educacionais pregressos existentes. Estes erros certamente ocorreram e continuam a ocorrer em ambientes diversos provenientes tanto de um sistema educacional falho, como de uma sociedade com baixas possibilidades de ascensão

O problema consiste em negligenciar os riscos em uma proposta política que se autodenomina radical para corrigir os erros pregressos, sem levar em conta suas contradições aplicadas dentro de sala.

Esta abordagem adota um raciocínio teleológico que consegue em um mesmo empreendimento

a) identificar o desfecho político dos acontecimentos futuros; 

b) caracterizar (ainda que vagamente) quais são os agentes responsáveis pelas falhas na sociedade; 

c) atrelar uma visão política unitária capaz de entender e solucionar este panorama; 

d) avaliar como o ensino de qualidade como o que atua politicamente para frear tais impulsos; 

e) autorizar o radicalismo ainda que para isso seja necessário “deter vidas”. 

Quando este tipo de teoria é aceito, ocorre um grande risco em se pensar as práticas educacionais, nas mais diferentes instâncias, alinhadas a ideias políticas totalitárias que atacam veemente visões discordantes

Observe o trecho abaixo:

A revolução é biófila, é criadora de vida, ainda que, para criá-la, seja obrigada a deter vidas que proíbem a vida. Não há vida sem morte, como não há morte sem vida, mas há também uma “morte em vida”. E a “morte em vida” é exatamente a vida proibida de ser vida.(Pedagogia do oprimido)

Através de trechos como os mencionados acima, é necessário colocar sob suspeição outras passagens do autor que supostamente prezariam pela “autonomia”, “liberdade” e “emancipação” dos alunos. Afinal, como conciliar perspectivas tão apostas filiadas politicamente à uma concepção política extrema?

A ética de Freire é universal na medida em que ataca seus inimigos em nome de um projeto político, mas relativa na medida em que prega o respeito do conhecimento do aluno, ainda que, ao reclamar do respeito aos saberes do aluno, não veja problema em  lançar mão de uma “ética universal”. 

É estranho pensar que uma filosofia política tão diretiva politicamente peça que professores e alunos se encontrem em um mesmo nível, ao longo do processo de ensino. 

Não haveria neste empreendimento algum tipo de risco a autoridade do professor? É justo se perguntar, sem a capacidade de transmitir essas informações, o que sobra ao professor que leciona dentro de sala de aula?

É estranho notar como as ideias de Freire parecem ser conflitantes. O professor e aluno devem estar em um mesmo nível de conhecimento, ao mesmo tempo que “ninguém ensina ninguém”, nem pode haver "transmissão de conhecimentos” na medida em que ele “nunca disse” que educador e educando são iguais

O que ele sugeriu foi  que ambos não agissem de forma antagônica confrontando-se diante do projeto revolucionário. Mais uma vez, a política parece ser o elemento reinante destas contradições.

O método dialético de Marx, onde a tese e a antítese ganham contornos de conflitos para uma nova síntese, parecem ganhar vida enquanto contradições em sua obra. 

Freire não identifica empecilhos em defender livros educacionais com figuras políticas com um histórico ditatorial na América Latina e no mundo. Mao Tsé-Tung, Che Guevara, Fidel Castro são citados de forma elogiosa ao longo das obras do autor. 

Assim como aplicado por estes autores, o projeto político revolucionário que, deveria ser o enfoque da educação nacional, não parece ser sustentado por freios, podendo inclusive “deter vidas” daqueles que consideram estar sendo prejudiciais à proposta libertadora.  

Longe de lidar com as inúmeras contradições que abarcam a complexidade das relações,  o processo pedagógico descrito prega uma transformação radical da sociedade contra aqueles vistos como os que a estariam destruindo

Aqui há um maniqueismo reduzindo a oprimidos e opressores àqueles que são “bons” e os que são “maus”. Nesta luta, os primeiros estão autorizados a não medir forças para se lançar contra a perversidade. 

Se ninguém melhor do que eles para identificar os problemas da sociedade, qualquer um que enxergue por outros olhos, certamente não estaria capacitado para compreender a trama.

“Está errada a educação que não reconhece na justa raiva, na raiva que protesta contra as injustiças, contra a deslealdade, contra o desamor, contra a exploração e a violência um papel altamente formador. O que a raiva não pode é, perdendo os limites que a confirmam, perder-se em raivosidade que corre sempre o risco de se alongar em odiosidade. (Pedagogia da Autonomia)”
"Pode haver baderneiros entre os sem-terra", disse, "mas sua luta é legitima e ética". "Baderneira"é a resistência reacionária de quem se opõe a ferro e fogo à reforma agrária. A imoralidade e a desordem estão na manutenção de uma "ordem" injusta.”

Aqui, mais uma vez, o autor parece colocar outra inversão: como agir nesta sociedade, adotando um posicionamento político sobre o que é o melhor, correto e necessário sem adquirir largamente uma quantidade acachapante de conhecimentos transferidos, capazes de orientar aquele que se julga capaz de dizer quais medidas são mais adequadas à uma coletividade? 

Da forma como o autor se posiciona, a transformação radical da sociedade se reduz a uma questão de detalhe, basta bater o martelo para concretizar estas alterações.

O mesmo radicalismo do processo político pregado por governos totalitários é encontrado em Freire dentro do processo de ensino e aprendizagem. 

Ao estabelecer o projeto político como prioritário ao processo de aquisição dos conhecimentos, Freire omite a consequência prática que suas ideias inevitavelmente desencadeiam: colocar o acúmulo de conhecimento ajoelhado à crença política revolucionária.

O único desfecho possível para esta falta de clareza conceitual é a confusão dos seus adeptos, afinal, como saber se você está no time dos opressores ou oprimidos? É possível dar nomes, medí-los

Aqueles que compraram a teoria sabem muito bem que não querem se associar ao rótulo de “opressores” levando-os a estabelecer sanções aos que transferem conhecimentos. 

Essa divisão gera não apenas o esvaziamento do debate mas o sufocamento da Pedagogia enquanto prática científica ou que, ao menos, deveria ser guiada pelas melhores práticas disponíveis. 

Anos após a morte de Freire, há resultados indicando que há mais professores afirmando que o objetivo mais importante da educação está na política do que na transferência de conteúdos.

Longe de solucionar a necessidade de valores e mesmo da política para melhoria do ensino, estas ideias parecem fomentar mais o ressentimento do que o um comprometimento com a qualidade do ensino.

Conforme tentei demonstrar, em um cenário onde as pessoas têm valores e propostas de vidas distintas, essa perspectiva tende a reduzir o problema educacional aos que são “amigos” e “inimigos”, “opressores” e “oprimidos”, o que não só é prejudicial à relação das pessoas mas também a dados da ciência que, ao contrário do pedagogo, valorizam a transmissão de conhecimentos através de uma proposta instrucional.