Na semana do Natal de 2021, a tranquilidade da Praça Vilaboim, em Higienópolis, foi quebrada por uma cena incomum.
Diante de um ipê prestes a ser derrubado pela Prefeitura, uma mulher protestava com gestos firmes, gritos e o rosto coberto por uma espessa pomada branca.
O que parecia apenas uma discussão era, na verdade, o início de uma história que atravessaria décadas e fronteiras.
Uma trajetória que começa nos Estados Unidos, passa por acusações de trabalho escravo e até envolve o FBI Disputas de herança e um casarão em ruínas no centro de São Paulo também fazem parte dessa trama.
Essa é a história de Margarida Bonetti, a “Mulher da Casa Abandonada”, uma acusação que nunca chegou a julgamento.
Moradores e curiosos do bairro comentavam sobre a “mulher da casa abandonada”. Um casarão de três andares, janelas sempre fechadas, portão de metal trancado com corrente.
O jornalista Chico Felitti, que também morava próximo e conheceu a mulher durante a discussão na praça, decidiu investigar.
Ele recebeu a denúncia de uma moradora do bairro de que a “mulher da casa abandonada” estaria envolvida em uma polêmica internacional.
Descobriu através de uma matéria que a mulher se chamava Margarida Bonetti e que constava nos registros do FBI.
O motivo: ela era acusada, nos Estados Unidos, de manter uma empregada doméstica brasileira, em condições análogas à escravidão por quase 20 anos.
Seu marido, René Bonetti, havia sido condenado e preso pelo caso. Ela, não. Fugiu para o Brasil antes do julgamento.
De acordo com documentos da Justiça americana, a empregada começou a trabalhar para a família Bonetti quando Margarida tinha apenas nove anos.
Nos anos 1980, mudou-se com o casal para Maryland, onde teria deixado de receber salário a partir de 1979.
Testemunhos afirmavam que ela vivia em um porão, sem ventilação adequada. Tinha acesso restrito à comida. Também sofria agressões físicas, como empurrões, puxões de cabelo e queimaduras com líquidos quentes.
O caso se tornou emblemático nos Estados Unidos. Ele ajudou a impulsionar um projeto de lei que garantia a trabalhadores domésticos estrangeiros o direito de permanecer no país após denunciarem abusos.
Em entrevista a Felitti, Margarida afirmou que a acusação foi criada para permitir a aprovação de leis e gerar lucro para advogados.
“Existia, não sei se ainda existe, como se fosse uma máfia, organização de advogados que queriam ganhar dinheiro através do caso das empregadas que iam pros Estados Unidos e queriam se desvincular dos seus patrões. Então, eles precisavam que fosse aprovada uma lei para que isso fosse possível, para que elas pudessem se desvincular legalmente dos patrões sem ficar ilegais lá no país. Você entendeu isso?”
Já sob investigação, o retorno de Margarida ao Brasil, em 1998, impediu que ela fosse julgada nos EUA.
A Constituição brasileira proíbe a extradição de cidadãos natos, e, embora houvesse possibilidade de ela responder aqui pelos crimes, isso nunca ocorreu.
Com o passar do tempo, o crime prescreveu pela lei brasileira. O processo se transformou em um beco sem saída judicial.
Em 2022, Felitti decidiu conseguir uma entrevista com Margarida.
Passou horas em plantão diante do casarão. Ligou dezenas de vezes. Falou com vizinhos, porteiros, seguranças.
Em uma das tentativas, viu um vulto se mover atrás do vidro da porta. Era ela. A luz se apagou em seguida.
Sem desistir, contou com a ajuda de uma vizinha conhecida como Mari, que tentou aproximar-se da moradora. Nada funcionou.
Até que, numa manhã de domingo, a chance apareceu. Margarida estava no jardim, varrendo folhas. O jornalista se apresentou, pediu uma entrevista. Ela respondeu que precisava “escovar os dentes” e desapareceu e não voltou.
Horas depois de Felitti deixar a praça, o telefone tocou. Era Margarida.
Pediu desculpas pelo sumiço e concordou em falar. Seguiu-se uma conversa de mais de duas horas, a primeira entrevista que concedia em mais de 20 anos.
Ao longo da ligação, Margarida negou todas as acusações. Disse que nunca agrediu ou explorou a empregada, que a considerava “ uma amiga”. Enfatizou também que desconhecia a falta de pagamento.
“Ela tinha esse péssimo hábito da mentira. E isso continuou a vida inteira, por todo o tempo que eu tive contato com ela. Mas a gente brincava, ela era minha amiga. Sim! Era. E que que eu posso dizer? Ninguém pode mudar o que aconteceu”.
Enfatizava também ser vítima da máfia de advogados que pretendia aprovar uma lei para favorecer a permanência das domésticas nos Estados Unidos, de modo independente. Ao longo de toda entrevista, enfatizou que casos como o dela eram utilizados para angariar dinheiro e poder político.
Segundo ela, vizinhos teriam se aliado a essa rede por interesse pessoal.
Hilda desenvolveu um tumor uterino, descrito pela Justiça americana como “do tamanho de uma bola de futebol” e retirado em cirurgia. Margarida afirmou que era benigno e que a mulher não queria operar. Negou omissão de cuidados médicos.
Confronto com as evidências
Durante a entrevista, Felitti confrontou Margarida com pontos do processo e investigações do FBI.
Documentos mostravam que a empregada não tinha visto regular desde 1984. Também indicavam que não havia registros médicos compatíveis com os cuidados alegados.
As condições descritas, segundo esses documentos, configuravam trabalho análogo à escravidão pela legislação americana e brasileira.
Margarida manteve a posição: disse que passava longos períodos no Brasil e que, nesses meses, a empregada vivia “sozinha e livre” nos EUA, com a chave da casa.
Afirmou que não acompanhava de perto sua vida e que o pagamento era responsabilidade do marido.
Entre os anos 2000 e 2010, Margarida viveu nos fundos de uma casa de classe média no bairro Carlos Lourenço, em Campinas.
Usava o nome “Maria”, evitava contatos e chamava atenção pelo rosto coberto de pomadas e pelo hábito de fingir dificuldade para andar.
Vizinhos e o filho do proprietário do imóvel relatam que o local era insalubre, com restos de comida e fezes de animais. A estadia durou quase uma década, coincidindo com o prazo de prescrição para crimes de trabalho análogo à escravidão no Brasil.
A denúncia contra ela foi feita em 1999 e, por volta de 2010, já não poderia ser julgada no país. Pouco depois, voltou para a mansão da família em Higienópolis, onde vive até hoje. Nos EUA, porém, o processo segue ativo, já que o crime não prescreve.
A entrevista também revelou outro drama: o casarão onde Margarida vive estava no centro de uma disputa de herança.
Avaliado em cerca de R$10 milhões, o imóvel pertencia ao espólio dos pais dela e era alvo de processos movidos pelas duas irmãs.
Nos bastidores, já havia interessados na compra. Se a venda fosse concluída, Margarida poderia ser despejada.
Ela garantiu que não assinaria nenhum documento de venda: “É o desejo do meu pai e da minha mãe que a casa continue como é. Sou a única que vai mantê-la assim”.
Após a longa conversa, Margarida ligou várias vezes ao jornalista, deixando recados.
Reforçou quatro pontos:
Disse ainda que não voltaria a tratar do assunto.
Na série documental A Mulher da Casa Abandonada, que estreia no Prime Video, Hilda Rosa dos Santos dará seu depoimento público pela primeira vez. Ela é a empregada citada no processo contra Margarida Bonetti nos Estados Unidos.
Até agora, era conhecida apenas por registros judiciais e reportagens. Sua voz deve encerrar um longo silêncio e acrescentar peças essenciais ao quebra-cabeça que há décadas intriga a opinião pública.
O caso de Margarida Bonetti expõe um paradoxo jurídico: mesmo com acusações graves e provas aceitas em tribunal estrangeiro, um cidadão brasileiro pode não ser julgado se voltar ao país antes de um processo avançar.
Com a prescrição, a porta se fechou definitivamente para qualquer responsabilização criminal.
Hoje, mais de duas décadas depois, a história é lembrada não só pelo crime alegado, mas também pela resistência de sua protagonista em falar.
É lembrada pela pomada no rosto e pelo casarão em ruínas no coração de Higienópolis. E também pelo silêncio que, por muito tempo, envolveu tudo isso.
Ao final, Felitti não prendeu ninguém, não “resolveu” o caso, mas trouxe à luz um episódio que poderia ter sido esquecido.
Seu trabalho registrou o “outro lado” e, mais importante, mostrou os limites da lei, o alcance da imprensa e a complexidade de histórias que atravessam países e décadas.
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