Rasta

Rasta é um highlander, um artista que apresenta colunas irônicas, versões textuais de seu programa Rasta News, um jornal semanal isento de notícias. Não delicadezas aqui.

Não gostei do que você falou… Vou te cancelar!

Entenda essa curiosa cultura moderna, a do Cancelamento

Rasta

O que é cancelamento?

Empoderamento, lugar de fala, sororidade, cancelamento, "é sobre isse", todas estas são palavras e expressões estrambólicas de sentido anômalo que há pouco mais de uma década não faziam parte do repertório de acrobacias e trejeitos nem mesmo dos histriônicos mais histéricos da esquerda brasileira.

Eram bons tempos. Tinha aquela esquerda anti-americana mandando um “Fora FMI, Abaixo o Imperialismo, Fora ALCA, contra burguês vote 16,e lutando contra o projeto neoliberal”.

Ideias e chavões antigos que hoje carecem de apelo aos jovens. Vê-se hoje a nova esquerda que luta pelas causas do seu grupelho de “amigues”, ou questões extremamente pessoais.

A velha esquerda era mais legal porque ainda dava aquela sensação de ser uma luta pelos pobres e oprimidos.

Agora não há mais do que uma empulhação engabeladora de señoritos enpantufados cuja grande luta é sair como uma criança enfiando o dedo em tomadas até descobrir os limites da paciência da sociedade e dos seus próprios pais.

Esta linguagem não surgiu nas terras tupiniquins. Assim como todos os efeitos da novilingue progressiste, a cultura do cancelamento, é um produto dos social justice warriors da América.

Gente cuja maior dificuldade já enfrentada na vida foi pegar o carro no fim de semana para viajar e ter que comprar um café no Dunkin Donuts, por falta de uma cafeteria mais badabauê.

  • Você sabia? A novilíngua é uma ideia presente no livro 1984.

Certa vez, um maluco amigo meu, ao ver a histeria que as eleições americanas de 2016 estavam provocando no país, disse-me que a peça não passava de uma encenação barata de uma briga de família, em que a menininha californiana e a mãe dopada de Prozac e Chardonnay se juntavam para reclamar do pai que passava muito tempo administrando seu fundo de investimentos.

É realmente lamentável ver parte do povo brasileiro caminhando e cantando e seguindo o chororô das americanas como se fosse o mais feroz rugido ancestral do Mufasa a conduzir os famélicos da terra.

No Brasil, o problema de muitas pessoas ainda é passar a noite preocupadas se tem um maluco plantado com um fuzil no telhado da sua casa observando se está vindo polícia ou se o Santana tem ou não tem carburador.

Porém, como toda mentira tem a perna curta, as ideias progressistas precisam progredir e ser superadas antes que as balelas fiquem muito manjadas. E sob esta influência do jazz, o progressismo brasileiro foi progressivamente adotando certas agendas, falas e técnicas que em nada representam as dificuldades e necessidades fundamentais do cidadão humilde de um país padecido e como o nosso.

E assim, nossos jovens canceladores têm sido treinados desde muito jovens na diversas técnicas da paleta:

  1. a paletada alternada é quando múltiplos perfis fazem um revezamento de ataques no Twitter;
  2. a paletada empoderada é o ataque é feito com ares de força e confiança por um indivíduo claramente aflito e deprimido 
  3. a paletada crítica, que é uma paletada que toca avoid;
  4. existe até a transpalhetada, que é quando se sabe que o correto é fazer o solo de The Final Countdown com a paleta, mas você não consegue e faz com tapping e ainda engana quem acha que é mais difícil.

Hoje os paleteiros têm meios muito sofisticados para tocar suas melodias e atazanar completamente a vida dos seus adversários. Um dos lugares preferidos dos paleteiros é o Twitter.

Nos últimos anos, o Twitter tem sido considerado por muitos jovens um espaço ideal para apresentar um repertório pós-moderno de escalas muito lócrias.

Como Belasco já dizia, a esquerda tem muitos trítonos, muitos trítonos ela têm. Por conta da sonoridade medonha e terrível, estes jovens têm sido chamados de “diabulus in twitters”.

Mas se no passado os propagadores desses ruídos foram perseguidos, hoje eles executam o papel duplo de pervertores e moralistas. Fazendo uma tremenda zorra, ao mesmo tempo que se apresentam como representantes da justiça.

Ao mesmo tempo hereges e inquisidores.

Os cancelamentos não se limitam aos paleteiros do Twitter e podem ter proporções muito maiores e se espalharem por outras áreas das nossas vidas. Saindo do virtual e entrando no cotidiano do cidadão de bem, aporrinhando e taxando o seu colega de faculdade ou de trabalho.

As ofensas são muitas:

  • fascista;
  • nazista;
  • racista;
  • machista;
  • contrabaixista.

Essas são algumas das palavras utilizadas pelos canceladores para humilhar os que discordam da agenda.

Assim ocorreu com a jornalista do NYT, Bari Weiss. De acordo com a jornalista, os movimentos de paleteiros do Twitter causavam alvoroço nas redes dos jornais e acabaram reverberando dentro da redação do jornal.

Apesar de judia, ela passou a ser bolinada e a receber apelidos como Hitler, racista e fascista pelos colegas de redação, que a consideravam muito conservadora para os seus padrões.

É realmente uma grande perda que o mundo real não tenha aquelas regras antigas do D&D em que o sujeito que fosse chaotic evil não podia se meter a querer jogar de paladino.

Agora, fica aí esse bando de barbarians e black wizards depredando as pessoas e achando que entendem algo sobre carisma e empatia.

Cancelamentos famosos do Brasil

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Página do Instagram dedicada a promover o cancelamento da cantora Karol Konká.

No Brasil, a chusma de paleteiros canceladores já conseguiu desferir seus golpes. Um dos jovens mais joviais e simpáticos da internet, o youtuber Monark, vem tropeçando no frango e se consagrando, ano após ano como campeão de cancelamentos e perdendo alguns patrocínios, por conta de sua falta de filtros e sua cabeça obnubilada.

Com o corpo e o cérebro mais em forma, ano passado o voleibolista Mauricio Souza se tornou o caso de cancelamento mais badalado de 2021 por ter expressado algumas opiniões sobre os gostos do novo filho do Super-Homem.

Perdeu o emprego, mas ganhou 2 milhões de seguidores no Instagram. Aí eu vi vantagem…

Quem também viu oportunidade, foi um trio de youtubers que falam sobre futebol e se uniram sob o nome de Os Cancelados. Grande elenco. Alê Oliveira, o homem mais gado do mundo, foi cancelado em todos os seus empregos e pela sua ex-esposa, mas a culpa nunca é dele.

Thiago Asmar, o Pilhado, dono do canal Pilhado. Boatos contam que o homem tomou um cancelamento na rede globo após cair na net um vídeo dele com a ex-namorada do presidente da CBF.

Hoje ele tem o radar ligado e expõe todas as vezes que o Casagrande aparece falando groselhas e se perdendo na linha.

E até pouco tempo tinha também o fofo Rica Perrone, um paulistano que tem a nobreza de um carioca, grande entusiasta do querido vô Joaquin Teixeira, e com quem aprendi muitas informações preciosas que nos ajudaram a montar um dossiê para fazer a música do Felipe Neto.

O tal cancelamento nada mais é que uma forma indecorosa de renomear o bom e velho boicote para tentar levar ao ostracismo, aquele velho mecanismo do pharmakos, o bode expiatório.

Quando cancela-se o novilíngue progressista dos canceladores, não há nada de novo no front. Mais do mesmo. Muito antes do Twitter, Wilson Simonal foi ostracizado pela classe de artistas de esquerda que numa fofoca tremenda inventaram que ele era delator dos milicos. Conseguiram destruir sua carreira.

Por outro lado, há alguns anos, toda a grande mídia resolveu fazer um burburinho sobre um tal deputado que levava a vida como mero representante dos milicos. O tiro saiu pela culatra e me parece que eles pariram um presidente.

Essa palhaçada já está tão grande que precisou juntar gente de esquerda, incluindo seu Noam Chomsky, para assinar uma carta aberta tentando explicar para os outros o quanto essa cultura do cancelamento, além de ineficiente, era uma ideia ruim.

Mas a essa galera somaram-se outros 160 progressistas que não tem nada a perder para escrever uma carta em resposta dizendo que combater a cultura do cancelamento é silenciar minorias que foram canceladas por gerações.

É, Noam Chomsky, parece que o jogo virou. Mais um señorito termina sendo devorado pela dialética pomadista.

Vou te contar que meu esporte favorito atualmente é pescar defensores do cancelamento tentando devorar outros do mesmo tipo. É cancelador contra cancelador.

Lembro de quando você foi fazer seu discurso no Occupy e todo mundo ainda te escutava, Noam Chomsky. Seu tempo já passou, Noam Chomsky. A tua boquinha de coelhinho já murchou, Noam Chomsky. Vai precisar se modernizar porque para o agora você só está bom para ser cancelado.

Você pode inventar de ficar aí com essa paletada trancada ou no tecradinho fazendo teus arpejinhos no tuiti. Mas para cima desse Rasta, não.

Não me venha com essa sua melodia trancada. Daqui eu já venho observando as grandes produções da esquerda americana e isso aí que você quer é atenção. Quer um colinho dengoso. Uma sessão de afago no pâncreas.

Receber um mimoso leite com pera e uma mamadeira de ovomaltino na hora de nanar. Falta-te aquele conforto e a aprovação constantes que a vida adulta já não te permite e que já não condizem com um velho, que era para ter pensamento de velho, mas insiste em tentar andar por aí moderninho dependendo do aplauso e da estima de jovens com tererê no cabelo que jamais vão ler uma linha do que você escreveu sob linguística, mas que aceitavam pegar sua credibilidade emprestada quando você se acabava de falar sobre assuntos em que o proferido reverberava com o que o jovem queria, tipo Limp Bizkit e Papa Roach nos anos 2000.

Então, cultura do cancelamento é uma cultura yankee enganadora, uma cultura de lágrimas de crocodilo, de tatuagem good vibes no tornozelo: “live, laugh, love”, uma cultura que se acha merecedora de todas as delícias do jardim da Lana Del Rey, e que reage com ferocidade e violência quando seus sentimentos são "micro agredidos" ou "virtualmente violentados".

O cancelador é movido por duas cagadas do anjo pigmeu caolho muito sinistras:

  1. Self serving bias;
  2. Motivation asymmetry bias.

A primeira é uma tendência natural que todo mundo tem de tomar os créditos por tudo de bom que acontece com ele e responsabilizar pessoas e circunstâncias externas pelas coisas ruins.

Em algum momento do amadurecimento, o cara reconhece esse bias e vira gente, mas a cultura progressista tem negado sistematicamente ao jovem a possibilidade de chegar a essa conclusão tão fundamental.

Por recorrer tão frequentemente ao uso de expressões como "a sociedade racista", ou "o patriarcado", onde existe este inimigo sem face, uma sombra cuja presença está espalhada por todos os lados, culpada pelo que acontece de mal na vida de cada categoria identitária dentro do arco-íris do progresso.

A outra cagada do anjo pigmeu caolho é a ideia de que a própria pessoa é motivada pelo amor e que o outro é motivado pelo ódio.

Eu chamo essa gente de "os amantes do amor", a galera que é a "favor da empatia". Meu filho, quem é que é contra a empatia? “A favor do amor”, quem é a pessoa normal no mundo que vai se opor ao amor?

Essa cagada é particularmente ruim e é o que está por trás daquelas pessoas que acham que quem discorda da agenda delas é basicamente Adolf Hitler.

Ela termina gerando um ódio mortal que é travestido de amor.

O amor nunca teve tantos amantes, e o inferno nunca esteve tão cheio, é o sentimento que Charles Bukowski já descreveu no seu poema "The Genius of The Crowd", quando ele articula a primeira cagada como motivadora do fogo da segunda:

Existe suficiente má fé, ódio, violência e absurdo no ser humano médio para abastecer qualquer exército em qualquer dia
E os melhores no assassinato são aqueles que pregam contra ele
E os melhores no ódio são aqueles que pregam o amor
E os melhores na guerra – finalmente – são aqueles que pregam a paz
Aqueles que pregam deus, precisam de deus
Aqueles que pregam paz, não têm paz
Aqueles que pregam paz, não têm amor
Cuidado com os pregadores
Cuidado com os conhecedores
Cuidado com aqueles que sempre leem livros
Cuidado com aqueles que detestam a pobreza
Ou são orgulhosos dela
Cuidado com aqueles que são rápidos para louvar
Pois eles precisam de louvor em troca
Cuidado com aqueles que são rápidos para censurar
Eles temem aquilo que não sabem
Cuidado com aqueles que buscam multidões
Porque eles nada são sozinhos
Cuidado com o homem médio e a mulher média
Cuidado com o seu amor, seu amor é médio
Busca o mediano
Mas existe genialidade em seu ódio
Existe genialidade suficiente em seu ódio para matar você
Para matar qualquer um
Não desejando solidão
Não entendendo solidão
Eles tentarão destruir tudo
Que for diferente do que sabem
Não sendo capazes de criar arte
Eles não entenderão arte
Eles considerarão seu fracasso como criadores
Apenas como um fracasso do mundo
Não sendo capazes de amar plenamente
Eles acreditarão que seu amor é incompleto
E então eles terão ódio de você
E seu ódio será perfeito
Como um brilhante diamante
Como uma faca
Como uma montanha
Como um tigre
Como cicuta
Sua melhor arte”.

No fim das contas, a cultura do cancelamento é uma cultura que clama por poderes tirânicos ilimitados e que não aceita nenhuma responsabilidade por suas ações. Uma cultura de bigodagem.

E falando em bigodagem, é hora do nosso Troféu Bigodagem.

Troféu Bigodagem

O troféu Bigodagem de hoje vai para um dos canceladores mais antigos da nossa civilização: Meleto, um dos acusadores responsáveis pelo cancelamento de Sócrates.

Sócrates, quando não estava encantando a multidão com a redonda nos campos, com seus dribles e chapeletas, perambulava nas ruas de Atenas, a examinar a si mesmo e os cidadãos, reconhecer suas deficiências no que diz respeito ao amor à verdade e a buscar uma vida de virtude, em busca do melhoramento da alma, e consequentemente da Pólis, através do auto-conhecimento.

Acusado de ateísmo e de corromper os jovens, Sócrates irá mostrar a origem da fama que produziu estas acusações. Xenofonte, um ilustre democrata ateniense, interrogou o oráculo de Delfos sobre se haveria algum homem mais sábio que Sócrates. A pitonisa respondeu que não, e o próprio irmão de Xenofonte estava lá como testemunha.

Sócrates, ao receber tal profecia, pensou muito sobre o que o deus queria dizer e qual o sentido de suas palavras. Pois a si não considerava sábio, mas como o deus também não pode mentir, então Sócrates sai procurando as pessoas que são ditas sábias, a fim de confrontar o oráculo. Então ele vai e confronta um político tido como muito sábio, só que ao examinar o dito cujo, como era o costume de Sócrates, ele termina mostrando que a pessoa não sabia nada, e que levava o título de sábio sem ser. 

Veja que Sócrates fazia isso tentando se livrar da profecia do oráculo, mas ao fazer seus questionamentos, ele terminava provando que o oráculo estava certo, porque a medida em que Sócrates é mais sábio que os que ele confronta é que estes professam ser sábios, ao passo que Sócrates tem a medida exata da sua ignorância, de tal maneira a nem se considerar um sábio. 

Vejam aí o elemento trágico, o hybris, que é o desafio ao destino decretado pelos deuses, mas que termina por confirmar este mesmo destino.

Após os políticos, Sócrates vai aos poetas trágicos e ditirâmbicos, certo de que ali encontraria mais sábios que ele. Quem lembra de Íon, um diálogo curtinho entre Sócrates e um especialista em Homero, vai entender bem o que ele diz nessa parte. 

Ao questionar os poetas, Sócrates vê que eles não sabem nada do que eles mesmos escrevem, de onde ele conclui, assim como em Íon, que as verdades que escrevem vêm de uma inspiração, de uma possessão. Então, por essa razão, Sócrates superava os poetas da mesma forma em que os políticos.

Por último, Sócrates vai aos artesãos, aqueles que praticavam artes, no sentido grego, de algo a ser feito, então tanto vai ao ferreiro, como ao médico, quanto ao alfaiate, etc. Nestes, Sócrates achou sabedoria, muitos sabiam diversas coisas que ele não sabia, mas cada um, a respeito de sua própria arte. O problema é que, neles, Sócrates achou o mesmo defeito que nos outros, pelo fato de saberem sua própria arte, os artesãos se consideravam sábios em outras coisas de importância maior, e isso obscurecia o seu saber. Veja que não é de hoje que a gente cai nessa ideia de que a expertise em uma área vai transbordando e invadindo as outras.

Então Sócrates mostra que, a serviço do deus, ele sai questionando os homens e chegando à conclusão de que eles não são sábios e que alguns jovens ricos, ao seguirem-no e observá-lo fazendo suas indagações, passam a fazer o mesmo com os outros, surgindo então essa calúnia de que Sócrates corrompe os jovens. 

Mas Sócrates mostra que ninguém sabe o que ele ensina, porque ele apenas faz perguntas aos que se dizem sábios, e na ignorância deste fato, as pessoas inventam que ele ensina a respeito das coisas celestes e terrenas, a não acreditar nos deuses e ao argumento injusto triunfar sobre justo. Ele aponta acusadores específicos: Meleto, por parte dos poetas, Anito, por parte dos artesãos e Licon pelos oradores.

Sócrates encerra a defesa de sua primeira série de acusações e agora passa a tratar da acusação de corrupção da juventude, ensinando-os a adorar outros deuses. Ele pretende mostrar que é Meleto quem comete crime ao trazer homens ao tribunal tão facilmente, sem ter o cuidado de pensar realmente sobre as coisas.

Sócrates submete Meleto ao método Socrático, vai questioná-lo como faz com todos os que clamam saber alguma coisa. O argumento é simples e indutivo, Sócrates pergunta a Meleto se ele se importa com o melhoramento dos jovens, e Meleto responde que sim. Ele pergunta, então, o que melhora os jovens, Meleto chuta "As leis", mas Sócrates quer saber que tipo de HOMEM melhora os jovens, e se, por acaso, não são os juízes os homens que mais sabem as leis. 

Meleto concorda e infere que os juízes melhoram os jovens, Sócrates pergunta sobre cada um dos presentes, as testemunhas do julgamento, os senadores, os cidadãos da assembleia, Meleto conclui que todos estes melhoram os jovens, mas apenas Sócrates os corrompe. 

É o mecanismo do bode expiatório em funcionamento, que é o grande mecanismo que movimenta a tal cultura do cancelamento, a gente sabe que é impossível que todo mundo seja bom e que apenas uma pessoa corrompa as outras, o que estão fazendo com Sócrates é colocar todas as falhas que estão distribuídas em toda a sociedade ateniense e jogá-las em cima dele. 

Nossos justiceiros, ao reagir tão fortemente a coisas aparentemente tão desimportantes, non-issues, estão é fazendo uma confissão tácita de seus próprios pecados, pecados que não sabem como expiar, e tampouco têm a coragem para carregar a pena correspondente. 

Sócrates usa a alegoria do treinador de cavalos para mostrar que é impossível que apenas um homem corrompa a juventude enquanto todos os outros a fazem melhor. Meleto, na verdade, nunca parou para pensar sobre isso, é o que demonstra o filósofo.

Essa pergunta é maravilhosa, porque ela se relaciona com aquilo que nossos medievais já entendiam e que parecemos esquecer, de que a alma superior não pode corromper a inferior sem estar corrompida ela mesma e se tornar também inferior. É o que Sócrates está indagando, se ele torna os jovens piores involuntariamente ou voluntariamente. Meleto afirma que voluntariamente, ao que Sócrates afirma que chegou a um grau de ignorância que se tornasse maus alguns daqueles que estavam com ele, ele mesmo receberia o dano, então ou ele não os corrompe, ou se ele os corrompe, é involuntariamente, fazendo de Meleto um mentiroso em ambos os casos.

Sócrates vai se defender da acusação de Ateísmo, mostrando que ele, assim como os demais cidadãos, crê que o sol e a lua são deuses. Meleto o acusa de achar que o sol e a lua são pedras, quando, na verdade, Sócrates mostra que essa é a posição de Anaxágoras, um pré-socrático.

Sócrates irá indagar se pode alguém acreditar que não há cavalos, mas sim coisas relacionadas aos cavalos, ou que não há flautistas e sim coisas relacionadas à flauta. Meleto nega que isso seja possível, então Sócrates indaga se é possível alguém acreditar em coisas demoníacas e não em demônios. A resposta é, obviamente, não, e Sócrates diz que se ele ensina sobre demônios e os trata como deuses ou filhos de deuses, é impossível que ele seja ateu, como o acusa Meleto.

Para mim uma das partes mais importantes da obra, porque Sócrates vai se virar para a platéia e mostrar-lhes que está sendo acusado por simples ódio, e que é isso que vai causar sua queda, caso esta ocorra. 

Mas mais que isso, Sócrates age como uma espécie de oráculo aqui, e profetiza que ele não será o último, que esse ciclo de acusação e sacrifício do bode expiatório não acabará apenas nele. De fato, esse ciclo só vai se fechar significativamente com a morte do Cristo, que é o próprio Deus, e ainda assim, a gente volta a flertar com esse sacrifício ritual do bode expiatório de tempos em tempos.

A história de Sócrates a gente já sabe como termina, e a história de Meleto só sabemos como um side story no arco narrativo deste grande homem.

Meleto recebe o troféu bigodagem de hoje, por personificar o artista chorão que não criou nenhuma arte que tenha valido a pena ser preservada para nós, e cujo nome só ficou imortalizado pela injustiça que fez cair sobre um homem inocente. Em vida, ele seguiu poeta, caminhando, cantando e seguindo a canção, e merece aqui o nosso troféu bigodagem.