Quando o prazer vira dependência
Vídeos curtos, redes sociais, jogos e séries produzem estímulos constantes de dopamina, o neurotransmissor ligado ao prazer e à recompensa.
Cada curtida, comentário ou nova notificação cria um pequeno ciclo de satisfação imediata, e quanto mais o cérebro se acostuma a essa frequência, mais difícil é desconectar.
Segundo o psicoterapeuta David Rosenfeld, da Universidade de Buenos Aires, as telas oferecem uma forma de fuga e, ao mesmo tempo, um tipo de excitação cerebral contínua.
O problema, diz ele, é que essa estimulação constante mantém o cérebro em estado de alerta, o que provoca cansaço mental, irritabilidade e dificuldade de foco.
A psiquiatra Julia Khoury explica que a dopamina, quando liberada em excesso, gera um looping perigoso. Quanto mais prazer imediato se busca, mais difícil é interromper o ciclo.
“O cérebro aprende que o caminho mais rápido para a satisfação é o estímulo digital e, quando isso se repete, o controle se torna cada vez mais difícil”.
Crianças e adolescentes: uma geração exposta a estímulos constantes
O impacto é mais forte nas idades em que o cérebro ainda está em formação. O psicólogo Cristiano Nabuco, especialista em dependências tecnológicas, explica que o cérebro humano só amadurece completamente por volta dos 25 anos.
Antes disso, é mais vulnerável aos estímulos rápidos das telas, o que pode afetar a concentração, o autocontrole e a forma de pensar.
“Quanto mais tempo uma criança passa exposta a esse tipo de estímulo, mais o cérebro se adapta a ele. O problema é que o mundo real não funciona no mesmo ritmo.”
De acordo com a pesquisa “Panorama da Primeira Infância", da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, mais de 60% das crianças de até seis anos têm contato diário com celulares, TVs e tablets.
Em média, essa exposição dura de duas a três horas por dia.
O estudo revelou ainda que 78% das crianças de até três anos usam telas todos os dias, apesar de 58% dos pais reconhecerem que esse hábito deveria ser limitado.
A exposição precoce preocupa porque a primeira infância é a fase de maior desenvolvimento cerebral.
Até os 6 anos, o cérebro forma até um milhão de conexões por segundo, um ritmo que nunca mais se repete.
O excesso de telas nessa fase pode afetar:
- o sono;
- dificultar o aprendizado e
- reduzir a interação familiar e prejudicar o desenvolvimento emocional.
Além disso, o problema se agrava quando se considera a realidade do Brasil:
- 55% das crianças de 0 a 6 anos vivem em famílias de baixa renda e;
- 60% nunca frequentaram creches ou pré-escolas.
O psicoterapeuta Tom Kersting, que atua há 25 anos em escolas, observou fenômeno semelhante: desde 2012, quando 30% dos adolescentes passaram a ter smartphones, cresceram os casos de TDAH, ansiedade e comportamentos antissociais.
“Não se trata só do tempo de tela. É do que eles deixaram de viver: brincadeiras ao ar livre e interação real.”
Adultos também estão presos
O excesso de telas não é exclusividade das gerações mais novas. Entre adultos, nove horas por dia de exposição média significam menos tempo para dormir, se exercitar e conviver com a família.
Ela define o uso problemático de telas como aquele que começa a consumir o tempo necessário ao funcionamento humano normal, o sono, o trabalho e as relações.
O pesquisador Dino Ambrosi estimou que, se uma pessoa de 18 anos viver até os 90, terá 334 meses de tempo livre e que 93% disso, em média, será gasto diante de uma tela.
Ambrosi afirma que o dado é alarmante porque mostra que a maior parte da vida desperta está sendo vivida no espaço digital, muitas vezes de forma automática.
A nova dinâmica familiar
A psicóloga Catherine Steiner-Adair identificou outro efeito colateral: a competição entre filhos e celulares pela atenção dos pais. Em seus estudos, crianças relataram sentir-se ignoradas porque os adultos estão constantemente conectados.
“Os pais que não controlam o próprio uso têm dificuldade em impor limites aos filhos”.
Ela afirma que a situação se agrava quando as telas são usadas como “babás digitais", recurso comum em famílias exaustas ou em trabalho remoto.
O que isso muda para pais e responsáveis?
Para Yunyu Xiao, professor de Psiquiatria e Ciências da Saúde Populacional do Weill Cornell Medical College, os pais não devem apenas limitar o acesso às telas, mas também observar sinais de dependência digital, como:
- Irritação ou ansiedade quando o celular é tirado;
- Uso prolongado mesmo sem necessidade;
- Dificuldade de parar mesmo em momentos importantes;
- Redução da interação presencial com amigos e familiares.
Em muitos casos, o tratamento envolve psicoterapia cognitivo-comportamental. E simplesmente “tomar o celular” pode piorar a situação, gerando conflitos familiares ainda mais graves.
Uma responsabilidade que vai além da família
Um estudo publicado no JAMA Psychiatry aponta que as empresas de tecnologia também têm responsabilidade pelo problema.
Segundo o psicólogo Mitch Prinstein, da Associação Americana de Psicologia, as plataformas são projetadas para gerar dependência e políticas públicas devem exigir um design “apropriado para a idade”, algo que já existe no Reino Unido.
“Simplesmente culpabilizar os pais é injusto. Muitas famílias não têm tempo ou condições de supervisionar tudo”.
O estudo não prova que o vício em tela causa diretamente os problemas mentais. Mas mostra um padrão: quanto mais tempo com comportamento viciante, maior o risco futuro.
A pesquisa também destaca que o impacto do tempo de tela varia com o que é feito online. Assistir vídeos educativos ou jogar com amigos, por exemplo, não tem o mesmo efeito que consumir redes sociais de forma compulsiva e solitária.
O uso de telas faz parte do cotidiano no trabalho, nos estudos e no lazer. Com o aumento do tempo de exposição, o tema envolve famílias, escolas, empresas e governos.
No Brasil, a média diária já passa de nove horas de conexão, colocando o país entre os que mais passam tempo diante de uma tela.