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Educação
3
min de leitura

Audiolivro conta como leitura?

Existe um estigma no audiolivro. Uma mancha. A ideia de que ele é apenas uma sombra do livro: uma variação menos importante da coisa “verdadeira”.

Por
Raul Martins
Publicado em
24/11/2025 11:29
Casa das Vozes
Artigo de opinião.

Pergunta à queima-roupa: você contaria os audiolivros entre os livros que leu neste ano? Se, digamos, leu oito livros — físico, Kindle, PDF — e ouviu mais oito livros… você diria que leu dezesseis livros em 2025? 

Sejamos sinceros: para muita gente, o audiolivro é o primo pobre, sujo e um pouco fedido do livro físico. O livro físico é o primo que deu certo na vida. Saiu da escola com 13 anos porque era um gênio, já sabia qual curso na faculdade iria fazer desde que nasceu e depois conseguiu bolsa em Harvard e lá abriu uma startup com valuation de 1bi. 

Todos têm orgulho do livro-primo, fazem questão de mostrá-lo no ônibus e adoram sentir-se inteligentes só por tabela. Já o audiolivro parece ser o primo do qual a gente gosta, mas ninguém pode saber. 

Existe um estigma no audiolivro. Uma mancha. A ideia de que ele é apenas uma sombra do livro: uma variação menos importante da coisa “verdadeira”. No máximo, quando topamos com algum entusiasta, um complemento bem-vindo, um coadjuvante que está ali para fazer o protagonista brilhar.

O que você vai encontrar neste artigo?

Tempos atrás, surgiu uma briga nas redes sociais. Sim, eu sei. É chocante. Coisa raríssima. Seja como for, o barraco começou quando uma menina postou sua lista de leituras de 2024 e… havia muitos livros. “Muitos” no sentido de “isso parece mentira e você inflou os números só para se mostrar no Threads e pagar de gatona.”1 

Porém, a moça resolveu pôr um fim àquela feira e finalmente explicou o milagre de ter conseguido ler três dezenas de livros ao longo de 365 dias — vários tinham sido audiolivros! 

Pronto. Foi a última martelada no último prego do seu caixão. 

Porque logo em seguida começaram a acusá-la de estelionatária livresca. Que conversa era aquela de surrupiar para dentro da lista obras que ela nem tinha lido? Maquiar os números com audiolivros? Muitos se sentiram traídos, feridos em sua honra porque a mulher acrescentou à lista algo que ela tinha ouvido.

“Só”. Eis a palavrinha-chave. 

Na cabeça de algumas pessoas, ouvir um livro é ficar completamente passivo. Prestar zero atenção ao que se diz. Desligar a cabeça, apagar as luzes da inteligência e deixar um barulhozinho de fundo, tagarelando palavras em algum recanto do cérebro feito a música no elevador. Talvez você pense assim.

Então segunda pergunta: se você não incluiria os audiolivros em sua lista de leituras, Esculhambaram a menina nos comentários, alguém trouxe à baila sua loirice como prova circunstancial do que se supunha uma mentira deslavada e sobrou até para o capitalismo, coitado, que no final sempre leva a culpa

Colm Tóibín, por exemplo, romancista e chanceler da Universidade de Liverpool, diz que ouvir livros em vez de os ler é como assistir a uma maratona pela tevê em vez de correr uma maratona. O leitor (ouvidor?) de audiolivros seria, então, equivalente ao fã de UFC que já viu todas as lutas do Poatan, mas é obeso mórbido e teria um AVC se levantasse muito rápido do sofá. 

Colm só esqueceu de um pequeno detalhe: você pode ver quinze mil corridas e nunca chegar à esquina da sala. Se você ouvir um audiolivro inteiro, vai chegar ao final do livro. Você pode dizer que o meio de transporte é diferente, pode espernear à vontade sobre a facilidade preguiçosa de um e o esforço nobre do outro — mas tanto ler quanto ouvir levam o sujeito até a linha de chegada: a última página.

Estou ouvindo “A Brevidade da Vida", do Sêneca. Pus o livro para tocar enquanto arrumava os pratos, copos, talheres e os colocava na lava-louças. Ouvi Sêneca — ou, mais estranhamente, ouvi uma voz dando vida a Sêneca — dizendo que existem muitos prazeres estúpidos e vis com os quais podemos gastar a vida inteira, e os mais estúpidos e vis de todos são os prazeres sensuais. 

Dante Alighieri — que eu estava lendo, e não ouvindo — pensa o contrário: n’A Divina Comédia, os violentos estão no Sétimo Círculo do Inferno. Os luxuriosos e glutões, nos dois primeiros. Um livro ouvido iluminou e aprofundou um livro lido. 

Por que eu não poderia dizer que “li” A Brevidade da Vida? Eu absorvi o seu conteúdo, prestei-lhe atenção real às ideias e as usei para entender melhor tanto as minhas ideias quanto as de outro gigantesco autor — tudo enquanto arrumava a louça. 

Ouvir um audiolivro é a mesma coisa que ler um livro? É claro que não. Um analfabeto não entende bulhufas de um livro escrito. Um cego não consegue enxergá-lo2. Um disléxico vai penar para acompanhá-lo. Os três conseguiriam entender o mesmíssimo conteúdo se gravado num audiolivro. 

Então precisamos deixar a leitura de lado porque agora temos acesso a uma nova tecnologia? O mundo mudou, chegou o progresso, a leitura tornou-se obsoleta? 

É claro que não. O audiolivro complementa o livro e vice-versa. Mais de uma vez eu já li e ouvi um livro ao mesmo tempo, especialmente quando estava com dificuldades para me concentrar (coisa muitíssimo comum, aliás).

O audiolivro não é o primo pobre do livro. É, ao mesmo tempo, a mesma coisa que o livro e coisa diferente do livro. Tem a organização inigualável de um livro, o rigor lógico da escrita e a presença de uma voz, o calor do som. 

Com certeza vou incluir os audiolivros que ouvi à minha lista de leituras de 2025. 

Como diria o glorioso Roberto Carlos: se li ou se ouvi, o importante é que emoções eu vivi (leia com os melismas e a longura do “i” dum cantor profissional. Nem para termos um audiolivro deste meu texto…)  

Notas:

 1 Alguém poderia dizer, claro, que não é assim tão difícil ler um número de livros a ponto de ele soar mentiroso num país tão inacreditavelmente bibliófilo como o Brasil e sua média eruditíssima de dois livros e meio por ano. O tal alguém seria um maledicente. E também estaria certo.

2 Vale lembrar, aliás, que os primeiros audiolivros surgiram justamente como alternativa para os cegos.

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