Boécio na prisão: quando a Filosofia ensina a começar de verdade
Boécio escreveu A Consolação da Filosofia em uma situação pouco favorável a discursos otimistas.
Preso, injustamente acusado, privado de cargos, honra e futuro visível, ele se encontrava no ponto exato em que muitas de nossas ilusões sobre “bons começos” pareceriam piada de mau gosto.
É nesse contexto que a Filosofia, de maneira personificada, aparece para lhe dizer algo pelo menos desconcertante: o problema não está nas circunstâncias, mas no critério com que julgamos as circunstâncias.
Ao longo da obra, a Filosofia conduz Boécio a uma tese exigente e certamente ofensiva para a sensibilidade moderna: não existe verdadeira desgraça para o homem virtuoso.
Tudo o que lhe acontece, inclusive a perda, o fracasso e a mudança abrupta de rumo, pode ser integrado ao seu aperfeiçoamento moral.
Não que o sofrimento seja bom em si, obviamente; mas o homem bom sabe o que fazer com aquilo que lhe acontece.
Por que a fortuna só existe para o homem bom
O ponto mais desafiador do argumento da Filosofia é que aquilo que chamamos de “fortuna” não é boa ou má em si mesma. Ela só se torna boa ou má conforme o caráter de quem a recebe.
A mesma situação externa produz efeitos opostos em pessoas diferentes. Para o homem virtuoso, a fortuna favorável é ocasião de gratidão e retidão; a adversa, ocasião de fortalecimento, correção e lucidez.
Por sua vez, para o homem vicioso, a fortuna favorável alimenta o vício; a adversa revela ou pune aquilo que já estava desordenado.
Por isso, a Filosofia postula algo aparentemente paradoxal: a fortuna nunca prejudica o homem bom. Tudo o que chega até ele (inclusive aquilo que chamamos de “começo difícil”) concorre para o seu crescimento.
É nessa chave que o sofrimento de Boécio na prisão é reinterpretado, deixando de parecer uma injustiça última, e passando a ser vista com olhar pedagógico, capaz de reorganizar seus afetos, seus desejos e sua visão de mundo.
O que isso tem a ver com o início de um ano
Boécio nos ajuda a deslocar o foco do entusiasmo inicial (tão comum no começo do ano!) para algo mais sólido: o compromisso disciplinado com a razão e com o bem.
A verdadeira boa fortuna não está na empolgação, mas na constância. Não está na promessa grandiosa, mas na decisão reiterada.
De fato, início de ano é um momento propício para assumir bons compromissos, uma vez que nós mudamos nossa disposição diante do tempo. Nada como a sensação de página em branco, de possibilidade, de reordenação...!
Mas a maturidade consiste em perceber que novos começos não pertencem ao calendário. Eles pertencem à vontade. A qualquer momento podemos decidir ser mais atentos, mais disciplinados, mais virtuosos.
E é exatamente assim que a vida deve acontecer.
Cair, claudicar, voltar: o gráfico precisa ser ascendente
Ao longo do ano, não caminharemos em linha reta. Vamos cair. Vamos claudicar. Em alguns momentos, aderiremos à virtude; em outros, ao vício. Vamos nos arrepender, corrigir o rumo, retomar o esforço.
O critério não é a perfeição instantânea, mas a tendência geral do movimento positivo. O que importa é que o gráfico seja ascendente, ainda que irregular. Que estejamos, no conjunto, rumo ao bem, rumo ao desenvolvimento, rumo à maturidade.
Se fizermos isso, talvez possamos dizer que honramos a lição da Filosofia oferecida a Boécio na prisão.
E, mais importante ainda, que honramos a Deus, que não exige de nós entusiasmos momentâneos, mas fidelidade perseverante.
Uma sugestão final
A Consolação da Filosofia está disponível no Teller, em uma narração particularmente cuidadosa e bem conduzida.
É uma obra densa, sim, mas surpreendentemente consoladora, sobretudo para quem atravessa períodos de transição, recomeço ou reordenação interior.
Talvez este seja um bom compromisso para agora.
Não apenas para o início de um ano, mas para qualquer momento em que você decida começar melhor.
Clique aqui e garanta seu acesso.