Elton Mesquita

Elton Mesquita é escritor, tradutor e roteirista na Brasil Paralelo. Seus textos fazem valer sua crença de que tudo o que pode ser dito pode ser dito claramente.

Uma Vida N'Outra Vida (Parte Final)

A última parte da investigação sentimental sobre a complicada relação de família entre Brasil e Portugal.

Elton Mesquita

Para qualquer um que se debata com o problema de manter viva uma brasa que é já quase cinza, vinda de muito longe no tempo, trocada por incontáveis mãos, é evidente o fascínio que têm as épocas em que tal brasa era chama nova — quando um filho de Baco podia ainda fundar uma cidade, quando o mundo era novo e ainda havia mapas a completar. E, de fato, bem poucas nações podem se gabar de ter completado tantos mapas quanto Portugal.

É por isso que não posso deixar de me empolgar por cada oportunidade de contato com civilizações antigas, que já estavam atarefadas com os problemas do mundo quando o Brasil nem sequer engatinhava. Com gente que podia olhar para trás e encontrar gerações de mortos familiares pavimentando o caminho para um passado comum; que, quando vivos, ajudando-se mutuamente ou competindo, contribuíram de alguma forma para a continuidade de família e nação.

Como acontece entre Gonçalo Ramires e Portugal — e como já comentei acima — sinto que há uma correspondência entre o Brasil e certo tipo de brasileiro, uma continuação em escala menor do destino do país no destino do indivíduo. 

Na Wikipedia, o pequeno texto introdutório sobre a economia nacional começa com uma não desprezível lista de fatores positivos que constituiriam um bilhete premiado para qualquer país de ambições medianas que desejasse apenas ficar por ali de boa, sem maiores intenções megalômanas. 

Imensa extensão territorial, clima ameno, riqueza em matérias primas, terras férteis etc. Em números, em puros dados estatísticos sobre potencial, um analista de fora concluiria tratar-se mesmo de um pedaço de terra afortunado. E no entanto topamos com uma cláusula pétrea no meio do caminho: 

“Apesar de conquistas econômicas, muitas questões sociais ainda impedem o desenvolvimento.”

A fórmula sociológica clássica equipara o Brasil a Portugal enquanto possuidores do mesmo aleijão na forma de se posicionar diante do tempo: Portugal, voltado para um passado que não retornará; o Brasil, para um futuro que não chega. Ambos à margem do tempo presente e tal e coisa. Esta é apenas uma das afinidades que aproximam os dois países.

Acredito que haveria supremo benefício numa reaproximação — não apenas acadêmica ou política, mas sentimental, familiar. Um lado poderia ajudar o outro a compensar determinadas deficiências de perspectiva, pequenas deformações do hábito que a proximidade não nos permite notar. 

Não podemos, sendo tão pobres, nos dar ao luxo de desperdiçar o tesouro dessa pequena Roma, nem que sejam apenas as gemas linguísticas — e este está longe de ser o único motivo:

Eça de Queirós, no conto “Adão e Eva no Paraíso”, se refere a Portugal como um velhinho cansado de aventuras e contente em apenas relembrar seus dias de glória ao pé do fogo (“nossa Lisboa aquece a sua velhice ao soalheiro, cansada de proezas e mares”). O mundo foi repartido e Portugal, por miríades de motivos que não cabem analisar aqui, perdeu seus bocados amealhados à custa de vida e tragédia humana.

O que parece faltar a este quadro com lareira e ancião aventureiro? Ora, a criança que lhe escute os relatos de proezas fantásticas; que aprenda as lições da experiência acumulada; que por fim tome para si a tarefa de carregar o fogo do entusiasmo ancestral ao descobrir os tesouros escondidos na velha casa da família, a herança de um povo que, como um rio profundo que não se altera, soube receber tributários que o enriquecessem, tornassem a sua um pouco a história de todos os que entraram em contato com ele. 

Meus amigos, trata-se de gente que tem estado por aí desde o paleolítico; gente tão sem noção que foi lá no Japão mostrar Cristo e arma de fogo a japonês.

Stefan Zweig, Gilberto Freyre, Vilém Flusser e outros tolinhos julgaram notar, na digamos “experiência brasileira”, qualquer coisa de nova e excitante no cenário mundial, uma nova espécie de híbrido enxertado, dotado de características incendiárias de mobilização e força — desde que devidamente excitadas — , de tenacidade aliada a uma feroz capacidade de adaptação, resistência passiva e resiliência. 

Presentes apenas à primeira vista antagônicos, mas na verdade complementares, agregados das tantas raças — dominadoras e dominadas — que foram a têmpera da lâmina lusa.

Não vejo porque não dar a estes senhores algum crédito. Já há muito, em cada momento acordado, não posso ignorar a percepção contínua de uma grande reserva dormente de força próxima, a suspeita de que em algum canto desta casa há um tesouro escondido. Isto me parece um assunto prioritário, no sentido de que a paciência das gentes uma hora se esgota. Potencial não realizado talha, azeda e envenena seu recipiente.

E este pode bem vir a ser o remédio amargo e necessário para produzir a faísca de ação num espírito — o Luso — não primeiramente levado pela cobiça, mas pelo medo de deitar fora, de desperdiçar, enfim de perder um recurso precioso, dom divino e por isso cercado de responsabilidades. É o medo do retorno do senhor severo de Mateus 25, 14:30, que move esse tipo de pessoa.

Este é o veneno que também pode curar: a medicina oriental, particularmente a chinesa, enfatiza uma maneira de encarar o corpo que é mais síntese imaginativa que a fria análise ocidental (literalizada por exemplo nas fatias de uma tomografia computadorizada). 

O corpo é visto como um sistema simbólico, sempre em fluxo; delicado, em perpétuo equilíbrio — o que quer dizer, em perpétua crise. Onde uma gota de veneno pode ser justamente o reagente necessário para fazer o corpo disparar em direção ao pólo da saúde. 

No entanto, há que se agir rápido, pois o veneno se acumula, torna-se demais, e acaba por matar o paciente.

“El pueblo portugués tiene, como el gallego, fama de ser un pueblo sofrido y resignado, que lo aguanta todo sin protestar más que pasivamente. Y, sin embargo, con pueblos tales hay que andarse con cuidado. La ira más terrible es la de los mansos.” (Miguel de Unamuno, Por Tierras de Portugal y de España)

Os Gonçalos do mundo uma hora estouram: No final de “A Ilustre Casa de Ramires”, o valentão que humilhava nosso protagonista apanha na cara com um chicote de cavalo-marinho de um antepassado dos Ramires. 

Isto só se dá quando Gonçalo pára de súbito com cada mau hábito acumulado em anos de inação: a conivência, a conveniência e a contemporização. Alguma dessas características parece familiar? Pois deveria: O “jeitinho brasileiro” é antes o “jeitinho português”

Esse e outros traços herdamos diretamente de lá; somos o galho enxertado no Novo Mundo de uma matriz com longevidade de sequóia que ficou na Europa. E em nós a matriz sempre viverá, sussurrando em nosso sangue o tema que é seu destino e tradição — o arraigar-se em potência, o nutrir-se à grande.

De alguma forma nos calhou ser a versão mais proeminente do “homo lusus”, como caipiras subitamente endinheirados. As dificuldades técnicas e de orçamento nós sabemos driblar com criatividade (desde as botas norte-americanas, grandes demais para pés brasileiros e estofadas com jornal pelos nossos pracinhas na Itália até pesquisas pioneiras em biotecnologia, como o tratamento de queimaduras à base de pele de tilápia, desenvolvido no Ceará). 

Os pracinhas da FEB são aliás um de muitos exemplos dessa característica nacional. Eles podiam não ser fortes, mas “armaram-se em fortes” quando o momento assim pediu, e isso é só o que importa.

Só precisamos mesmo de um senso de pertencimento que, ao contrário de tolher-nos o avanço, nos dará a perspectiva (nos devolverá, já que ela sempre foi nossa), a mirada privilegiada para sabermos o melhor passo a tomar; para então também metermos a mão firme às discussões do grande lá fora e ao leme da nossa vida.

Seríamos então talvez qualquer coisa de nova, o “Homo ludens” de Flusser, capaz de reconhecer e se relacionar com os eventos a partir da perspectiva do jogo. Como o Infante D. Henrique no poema de Pessoa, teremos posse do “globo mundo”, não para oprimi-lo, mas para jogar com ele… de repente até um ludopediozinho de leve, jogo no qual, me parece, brasileiros e portugueses acham certa graça.