O que é o projeto que equipara a prática de aborto a partir da 22ª semana à de homicídio
O projeto de lei 1904/24 altera o Código Penal brasileiro. A proposta impõe regras mais rigorosas para quem cometer aborto a partir da 22ª semana.
Se aprovada, a proposta continuará impondo punições para quem “provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque” ou “provocar aborto, sem o consentimento da gestante”.
As penas estabelecidas são equivalentes às aplicadas em casos de homicídio simples, ou seja, 20 anos de reclusão. Atualmente, o Código penal determina prisão de um a três anos para quem cometer aborto.
O texto do projeto que tramita na Câmara dos Deputados determina que o juiz possa mitigar a pena, ou seja, tenha o direito de torná-la mais branda, “conforme exijam as circunstâncias individuais de cada caso”.
É até mesmo possível deixar de aplicá-la, se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária”.
O aborto é crime no Brasil, exceto em três situações: risco de vida para a mãe, anencefalia do feto ou gestação resultante de estupro.
A questão é que o Código Penal não estabelece claramente idade gestacional limite para interrupção do aborto. Por essa razão, a questão retorna ao debate público de tempos em tempos.
O autor do PL 1904/24, deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), destaca que a indefinição de limite legal de idade gestacional para a realização de interrupção da vida do bebê abre precedente para a realização em qualquer período, o que fere o princípio de preservação da vida.
“Embora as Normas Técnicas do Ministério da Saúde estabeleçam que, nos casos de gravidez decorrente de estupro, o aborto somente deva ser realizado até a vigésima semana, tem sido divulgado nestes anos pós-pandemia que tais normas devem ser interpretadas de acordo com as leis e que, neste sentido, como o Código Penal não estabelece limites máximos de idade gestacional para a realização da interrupção da gestação, o aborto poderia ser praticado em qualquer idade gestacional, mesmo quando o nascituro já seja viável”, justifica Sóstenes Cavalcante, em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo.
Flexiblização legal da realização do aborto
O serviço de aborto em casos específicos passou a fazer parte da legislação brasileira a partir de 1989. O debate em torno do período limite para interrupção da vida do feto voltou de modo potente, principalmente após 2013.
Em setembro do ano passado, a ministra Rosa Weber julgou a ADPF 442, em que sustentou que não existe nenhum direito à vida antes do nascimento. A ação analisava o direito à interrupção da gravidez até a 12ª semana.
Em seu último julgamento da ministra antes de se aposentar, Weber afirmou em seu voto:
“A mulher que decide pela interrupção da gestação nas doze primeiras semanas de gestação tem direito ao mesmo respeito e consideração, na arena social e jurídica, que a mulher que escolhe pela maternidade.”
Na ocasião, a posição da ministra foi acompanhada pelo ministro Alexandre de Moraes.
Segundo parlamentares de oposição, foi uma recente decisão de Moraes que motivou a criação do PL 1904/2024, que equipara a pena por realização de aborto à de homicídio.
Em abril deste ano, o ministro concedeu uma liminar ao PSOL vetando a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que proibia a realização de assistolia fetal. O procedimento consiste em injetar uma substância química com o objetivo de induzir parada cardíaca no feto ainda no útero da mãe.
A técnica é recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para a realização de feticídio em bebês de até 22 semanas.
O procedimento é descrito por alguns médicos do Conselho Federal de Medicina como cruel e dolorosa.
“O procedimento é cruel demais para praticar eutanasia em animais que precisam ser classificados. Agora pode ser utilizado para matar crianças”, afirma o Padre Paulo Ricardo.
Em vídeo de sua rede social, o líder católico afirma que o procedimento é proibido pelo Conselho Federal de Veterinária desde 2012, tamanha a crueldade.
Algumas organizações pelos direitos reprodutivos são favoráveis à realização da assistolia fetal.
A Rede Médica pelo Direito de Decidir acredita que manter ou não uma gravidez seja um direito único da mulher:
“Essa é uma norma equivocada, é uma afronta aos direitos humanos. O status fetal não pode estar acima do direito das mulheres”, afirmou Cristião Rosas, presidente da instituição.
Entidade que se dedica à realizar estudos sobre os impactos de políticas públcias de flexibilização do aborto em áreas como saúde pública e direitos humanos, o Instituto Isabel diverge de que a interrupção de gravidez se trate de um direito exclusivo da gestante. Os especialistas da instituição acreditam que as duas vidas sejam igualmente importantes.
A 22ª semana de gestão já é considerado período final. O bebê não é apenas viável, mas 8 semanas depois se encontrará totalmente formado, com capacidade de abrir e fechar os olhos, fios de cabelo e até impressão digital.
Ao vetar a norma do CFM do Conselho Federal de Medicina, o ministro Alexandre de Moraes deixa a critério dos médicos a decisão de realizar o aborto, sem que sofram sanções do CFM.
A justificativa apresentada pelo ministro é de que as determinações da resolução excedem as funções do CFM ao impor restrições aos direitos das gestantes e dos profissionais da área.
Na liminar condedida, que atende uma ação interposta pelo PSOL, o Moraes ressalta que o CFM "transborda do poder regulamentar inerente ao seu próprio regime autárquico, impondo tanto ao profissional de medicina, quanto à gestante vítima de um estupro, uma restrição de direitos não prevista em lei, capaz de criar embaraços concretos e significativamente preocupantes para a saúde das mulheres".
Outra justificativa é de que a decisão está em desacordo com os padrões científicos estabelecidos pela comunidade internacional.
O CFM manifestou discordância do argumento, ressaltando que “a partir da 22 semana gestacional existe viabilidade de vida extra uterina do nascituro, portanto a realização de assistolia fetal a partir dessa idade não tem previsão legal, e foi considerada antiética pelo Conselho Federal de Medicina”, afirma.
Um dos principais juristas brasileiros em atuação, o advogado e professor Ives Gandra Martins publicou um artigo no qual discorda a respeito da decisão do ministro Moraes. O professor afirma que a liminar concedida de modo monocrático pelo ministro STF é inconstitucional:
“...pelo vício de atentar contra a vida. Reza o artigo 5º, “caput” da Lei Suprema, que é inviolável o direito à vida, não podendo uma lei de 1940 e ordinária prevalecer sobre o Texto Maior”.
O professor Gandra ainda ressalta outras razões pelas quais a decisão do ministro Moraes se contrapõe à norma legal brasileira:
“Por esta razão, do ponto de vista científico é a decisão do CFM inatacável, incensurável, rigorosamente constitucional por um elementar motivo não desconhecido de qualquer médico formado por qualquer faculdade de medicina do Brasil e de qualquer país do mundo, de que a partir de 22 semanas de gestação tem o nascituro perfeitas condições de vida extrauterina, sendo apenas um bebê prematuro.”
Oposição comemora votação da urgência da pauta
O ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha, afirmou, na segunda-feira (10/6), que o governo tinha interesse em que a urgência na votação da pauta não fosse analisada.
O ministro alega que é importante diminuir os efeitos da polarização entre parlamentares.
A pauta é importante para uma série de partidos que compõem a base governista. A deputada Sâmia Bomfim, do Partido Socialismo e Liberdade (Psol), escreveu em suas redes sociais:
“Criança não é mãe”, afirma. A deputada afirma ainda que “se o projeto for aprovado, em outros casos de estupro ou aborto inseguro, pessoas que abortam ou profissionais de saúde podem ser punidos pelo crime de aborto se fizerem o procecimento neste tempo gestacional”.
Em julho de 2023, a deputada criou um projeto que propunha o oposto ao PL 1904/24. A proposta de Bonfim era considerar tortura ações que impedissem ou agissem para retardar a interrupção de gravidez nas hipoteses permitidas pela lei.
O deputado Cris Tonietto (PL-MG) discorda de Bonfim. Ela acredita que, ao impedir a realização de procedimentos como assistência fetal, o PL 1904 é um "um duro golpe contra a cultura da morte".
Bonfim e outros representantes de associações em prol dos denominados direitos reprodutivos tentam negociar no Congresso a retirada de pauta da urgência na votação do PL.
Outros projetos relacionados ao impedimento da realização de aborto
É pouco provável que obtenham êxito. Parlamentares de oposição têm conquistado os votos necessários para aprovação. No jornalismo de bastidores, circula a notícia de que o próprio presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) seja favorável à aprovação da pauta.
Outros projetos que tramitam na Câmara também impõem restrições à prática de interrupção de gestão em diferentes estágios da gravidez. O PL 1096/2024, de autoria de Clarissa Tércio (PP-PE), criminaliza a assistolia fetal em qualquer período ou situação. A proposta impede compeltamente a realização do aborto. Estabelece ainda penas um terço maiores do que as aplicadas nos casos de aborto.
Enquanto se discute a urgência da análise deste projeto, também segue o processo do STF que a ADPF 441, cuja votação foi iniciada no período de Rosa Weber, que possibilita o aborto até a 12ª semana, nos casos previstos em lei.
O julgamento seguia em plenário virtual, com um voto contra a descriminalização, do ministro André Mendonça; e um voto a favor do ministro Alexandre de Moraes.
Kassio Nunes Marques destacou a ação para o plenário do Supremo, o que significa que ela será finalizada fora do ambiente virtual.
No momento, o julgamento aguarda uma nova data para recomeçar.
A ADPF 442 propõe flexibilizar as regras para a realização do aborto, enquanto o PL 1904/2024 propõe restringi-las. O PL equipara a realização do aborto após 22 semanas a homicídio. Por isso,está gerando intenso debate na Câmara dos Deputados.
O projeto enfrenta oposição de grupos que defendem os direitos reprodutivos. Por outro lado, tem o apoio de bancadas importantes, como as que defendem o direito à vida.
Fato é que, como aponta a especialista em bioética Isabela Mantovani, não existe evidência que comprove que a descriminalização resulte na redução de realizações.
O resultado da tramitação do pode impactar de modo significativo a cultura da morte que, sobretudo desde 2013, escala no Brasil.