Mariana Goelzer
Diálogos entre nós
Diálogos entre nós

Anamnese ou de onde a ideia vem

Por 
Mariana Goelzer
20/4/2022
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Olavo de Carvalho, retransmitindo em forma de conselho um legado que Comte nos havia deixado, instava-nos a procurar no baú de nossas reminiscências a origem das ideias que regem nossa vida. Apesar da evidente importância do exercício, confesso que nunca submeti voluntariamente a este precioso exame as concepções que governam minhas decisões. Mas aquilo que eu mesma não fui capaz de fazer, o destino o fez por mim.

Foi assim que, recentemente, ao mergulhar em uma nova leitura, vi-me obrigada a refletir sobre minha trajetória e sobre certos sonhos antigos, ao descobri-los herdeiros de um movimento político a cujas soluções eu claramente me opunha.

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Durante muitos anos, vi meus projetos e projeções rondarem o mito da ascensão profissional como um equivalente para realização pessoal. Não é que a família fosse aí uma opção ausente do jogo - ela raramente é. É que ela não figurava como a peça-mestra do tabuleiro, a partir da qual elaborava meu futuro e a qual eu deveria defender, acima de tudo, com unhas e dentes. 

Com o passar dos anos, essa configuração da carreira como fonte essencial de satisfação emocional perdeu força, mas não deixou de ser um referencial, um ponto para o qual eu me voltava pensativa; uma outra estrada que me convidava sedutoramente, e a que eu recusava, ainda que um tanto vacilante.

O impulso, agora, não era propriamente deixar para trás a profissão como esse campo de preenchimento interior, mas tentar conjugá-la com o cuidado da casa e a dedicação ao relacionamento. Sem me dar conta, eu estava inadvertidamente no meio do fogo cruzado entre dois mundos, o antigo e o moderno, tentando conciliá-los. 

Como muitas mulheres na mesma posição, tive que confrontar aquela velha sabedoria de que não nos é possível abraçar todas as missões do mundo. Querer tudo significava, simultaneamente, abrir mão de algo dentro das duas esferas.

O que eu não esperava era descobrir que esse conflito interno, com todas as suas derivações, não era uma casualidade da nova circunstância social, mas antes a execução precisa do plano da pessoa que gestara para as mulheres o ideal de encontrar no trabalho o eixo central de orientação da existência.

Essa revelação me chocou. Primeiro, porque Betty Friedan, feminista dos anos 1960 responsável por elaborar essa proposta, era coautora dos meus atos, palavras e sentimentos. Segundo, porque a descoberta tinha implicações práticas urgentes que não podiam ser negligenciadas e para as quais eu não tinha uma resposta convicta.

Terceiro, porque isso me forçou a questionar quantas outras vozes e forças das quais eu discordo atuam sobre mim, participando da determinação do meu contorno final, sem que eu tenha a menor ciência disso. 

Entre tantas ponderações pertinentes, muitas ainda em fase de amadurecimento e sem formulação definitiva, ficou a rememoração de que as nossas lembranças não

são o único ponto em que podemos buscar apoio para determinar de onde vêm as nossas ideias. A cultura preserva os caminhos intelectuais percorridos pelas mentes na formatação das lentes que hoje usamos para enxergar a realidade.

Reside aí uma outra fonte nesse processo de investigação para escavar aquilo que, sem ser nosso, tornou-se parte de nós. 

Trocando os termos, podemos apontar que a história guarda o segredo de quem somos mais nitidamente, porque expõe as correntes de pensamento que nos subjugam e nos localizam no tempo.

Por isso, procurar o conhecimento é desvendar a si mesmo e, ao mesmo tempo, alcançar um instrumento para remodelar-se conscientemente a imagem e semelhança do que, de fato, nos pareça mais precioso. Uma tarefa que, sem um delinear das ideias que agem sobre nós, dificilmente conseguiremos empreender.

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