Carlos de Freitas
A Vida Como Ela Não É... A palavra enquanto espaguete ao sugo
A Vida Como Ela Não É... A palavra enquanto espaguete ao sugo

Um Dia na Vida de um Repórter Esportivo

Por 
Carlos de Freitas
26/7/2022
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Lá pelos anos 70 - uma era mucho doida, bicho! -, eu editava uma revista dedicada a inspecionar os fenômenos paranormais: histórias de pessoas que haviam tido experiências sobrenaturais, que atravessaram os limites da realidade física. Não era raro encontrar relatos, os mais escabrosos, sobre indivíduos que, por exemplo, levitaram num ônibus lotado, conversaram sobre radionovelas com seu abajur, chuparam manga sem lambuzar os dedos, assassinaram um presidente. A revista durou pouco, mas éramos muito cuidadosos. Tudo com o nobre intento de fazer reverberar as mais modernas descobertas no campo da parapsicologia. A teoria da significação, recém elaborada, prometia revolucionar o mundo, permitindo até que peixes se tornassem juízes de família, gerentes de banco ou líderes maçons.

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Eu era muito jovem e queria dar algum sentido à vida de meus pais - eles viviam reclamando do tempo que eu passava fora de casa trabalhando. Quando terminei de ler Madame Bovary, em 1967, cheguei à conclusão de que aquela vida em São Paulo era muito provinciana e bucólica para um homem da ciência e me mudei para Birigui.

[alguma descrição da cidade de Birigui. Aquele matinho atrás da casa da Dona Gerja, onde fui flagrado lendo a Ilíada obscenamente, poderia  ajudar a história, mas ando muito atarefado para dar conta dos detalhes daquilo que meus olhos viam]

Eram tempos difíceis, a ditadura não nos incomodava, de modo que ninguém se importava muito com a gente. A redação era pequena. Muitas vezes, tínhamos que nos desdobrar em pseudônimos para preencher o espaço da revista. Nosso único anunciante, um cientista que havia inventado uma piteira de cigarros que também servia de apito - muito útil em casos de assaltos ou se você fosse pego desprevenido para apitar um jogo do Vasco -, pagava relativamente pouco pelo espaço e por isso mesmo dependíamos muito das vendas nas bancas.

O dono da revista, Adir Abelson, conhecido como Tatá, era um homem calmo, sereno, que vivia dando cabeçadas na mesa e atirando grampeadores quando não atingíamos a meta de vendas. Ele havia juntado um bom dinheiro aplicando pequenos golpes como editor de um jornal questionável, chamado O Globo. Certa vez, ao mandar Ralf, nosso repórter, para a casa de uma senhora que afirmava ter matado o próprio ego envenenado, Tatá disse: - “Essa história ainda vai nos garantir um prêmio”. Tudo o que ganhamos foi um filhote de Fox Paulistinha que a senhora disse pertencer ao ego assassinado e acabou se tornando nosso mascote. “Podem levar”, foram suas palavras. Ao lado de Frithjof Schuon, nosso Boston Terrier, foi a alegria da casa, roendo os pés de mesa e triturando o tecido do sofá.

Lembro com saudades da casa que nos abrigava. Um sobrado com 3 dormitórios, 2 banheiros, 2 vagas, box de vidro, armários embutidos no quarto, nos banheiros e na cozinha, quarto de serviço e banheiro de serviço. Rua silenciosa. Deus sabe das dificuldades que passávamos para que toda terça-feira a revista estivesse nas bancas. Passamos bons e maus bocados. Nos melhores dias, tínhamos até um repórter especializado em dar títulos às matérias. Eu nunca fui muito bom nisso de dar título. Almoçávamos lá mesmo. O pai de Tatá, Luigi Marnoto, era um cozinheiro ornamental responsável pela primeira omelete bizantina feita na vida real e não apenas em contos de terror - houve uma extensa reportagem na revista O Babador sobre o feito. Luigi desistira de ser mágico porque tinha alergia a pombas. “Truques são com cartas de baralho e pronto. Maldita hora que inventaram essa de arremessar pombas pra todos os lados”, dizia. Foi assistente de Renier Al Thompson, o grande chefe sueco que foi assassinado em circunstâncias misteriosas. Mas voltando ao assunto principal, ainda não mencionei o nome da revista.

A revista chamava-se O Travesso Mundo das Experiências Transcendentais. Eu era editor e colunista. Na época, lia o que de mais moderno havia sobre paranormalidade, perenialismo, ocultismo, socialismo fabiano, marxismo e os livros de Kurt Vonnegut. Aliás, conheci Kurt na única vez que fui à França para colher o relato místico de um adolescente que jurava ter sido convidado por Voltaire a fazer o desjejum só de roupão.. Kurt soube do caso e foi lá para saber detalhes íntimos do grande iluminista. “Ele provou a Torrada Melba? O que ele viu assim que morreu, ele te disse?", perguntava animado ao garoto, Bernard de Bastien Laviolette. 

Fomos a um café e ele me contou sobre suas obsessões. Falamos sobre cigarros, conservadorismo, revolução, futebol americano (na época, não sabia nada sobre o esporte. Só fui entender mais quando assumi a direção de um semanário de esportes num jornal de Alegrete), pássaros e lagartos. Disse que estava escrevendo um livro de receitas de desjejuns para craques da NBA, ou algo parecido. Gostei muito da nossa conversa, embora no final quase saímos no tapa quando lhe disse que preferia Gina Lollobrigida a geléia de pêssego. Kurt parecia notadamente sensível a respeito desse assunto. 

Mas eu dizia que vivia uma febre de conhecimento. Fui eu que propus a Tatá qual seria a linha editorial da revista. Nos conhecemos nos fundos de uma taberna muito famosa em Sandovalina que fazia um crème d’abricots único. Ele me disse que estava fundando uma editora especializada em lutas do gel e eu lhe disse que poderia cobrir os eventos, caso precisasse. É engraçado como momentos aparentemente banais podem mudar pra sempre nossa vida. Foi um simples esbarrão, um pedido de desculpas, um reconhecimento na vez seguinte, o abandono da esposa, uma tentativa de assassinato e já éramos como irmãos que se encontram depois de um hiato de dez anos.

A idéia que propus era falar das mais recentes descobertas no campo da espiritualidade em geral (ando meio repetitivo, eu sei). O assunto estava em alta. De René Guénon a Ronald Golias, passando pela tradição védica, aquele cara que entortava colheres e o misterioso aumento do número de pênaltis a favor do Palmeiras. Não imaginava a quantidade retumbante de relatos, histórias, lendas locais, desentendimentos entre divindades - incluindo uma disputa calorosa que terminou no ringue entre um antigo Deus fenício e o Dalai Lama. Tá tudo disponível na edição de luxo que a Casa Karma & Feitiço lançou no ano retrasado e que pode ser comprada em qualquer livraria de porte do país. Estuda-se até uma tradução para o latim, língua que dá sinais de estar ressuscitando. 

Mexer com tais assuntos abalou profundamente as minhas crenças que, na época, eram qualquer coisa que não fosse o Deus Cristão. Não me orgulho disso. Quem me conhece sabe que já retornei ao catolicismo desde os fins dos anos 80 quando ouvi meu tendão de aquiles romper em plena guerra fria. Era isso ou continuar ouvindo Caetano e Gil pro resto da vida. Só que também não me arrependo de ter tido contato com todas aquelas experiências. Restaram bons amigos, como uma baleia-da-Groenlândia, Nasha, que conheci quando um mestre em telepatia me ensinou algumas técnicas. Ainda hoje dou uma chegadinha em Santos, no Canal 4, perto da Chopperia do Heinz,  a fim de nos comunicarmos por cerca de uma duas horas, apenas o tempo necessário para dizimar a saudade. Ela já tá velhinha, com uns 180 anos, mais ou menos, e tá ficando rouca.

Foram 15 anos editando semanalmente a revista (de 1971 a 1986) até que Tatá morreu e seu filho, Cleber (pronunciar estendendo até a falta de ar os erres), que tinha uns 40 anos e era líder do movimento estudantil da PUC, resolveu transformar a casa do pai num teatro clandestino. Nem Pulitzer, nosso Fox Paulistinha, foi poupado. Consegui resgatá-lo a tempo quando uma das atrizes da companhia Dionísio Depurado Sempre Pelado, que usava o teatro como sede de suas torturas, digo, suas peças, tentou se insinuar para ele. Frithjof morrera anos antes ao ver sua escola perenialista se deteriorar nas mãos de aproveitadores. Foi deprimente.

Os anos 90 foram ladeira abaixo. Tive dificuldades de reaver o material já que Cleber, um materialista inveterado, achava aquilo tudo perda de tempo. Um dia, tomado pela fúria, invadi o teatro durante uma releitura de Hamlet. Aproveitei o momento do duelo de Rap entre Hamlet, um chefe de boca do tráfico, e Laertes, um miliciano que cobrava imposto dos moradores da comunidade, e peguei o que pude. 

Há duas semanas, Cleber faleceu. Estava morando numa pensão da Bela Vista, em São Paulo. A antiga sede da revista e do teatro Todo Mundo Quase Nu foi cedida a um bando de sujeitos que fumam cachimbos e usam cobertores de feltro. Não entendo nada de arte moderna, confesso. 

A notícia trouxe à tona lembranças muito agradáveis. Fui ao sótão de casa e revirei o antigo baú que resgatei naquele fatídico dia em que Hamlet, Laertes, Cláudio e Gertrudes foram mortos pelo Bope numa operação ilegal contra as drogas, naquela releitura tão atual de Shakespeare, trasferindo a tragédia das brumas de Elsinore para o Complexo do Alemão. Encontrei várias cartas enviadas pelos leitores. Pesquei aquelas cujo destinatário era eu e fiquei deveras comovido.

Muitas das cartas são perguntas corriqueiras e desimportantes: quais os princípios fundamentais da metafísica? Como me religo ao criador? É biscoito ou bolacha? Recebi algumas cantadas, mas todas vinham do mesmo endereço: Miami. Recebi alguns xingamentos também, o que muito me honra. Não tenho condições arteriais para agradecer a todas as ofensas, as quais ignorei totalmente na época. Uma pena. De qualquer modo, separei algumas das cartas mais relevantes que recebi nesse curto tempo. Acho que as críticas são todas oportunas e as mensagens de incentivo também. Agradeço a todos os que, de alguma forma, contribuíram para meu aperfeiçoamento mental, porque o físico foi pro beleléu faz tempo. 

Culpa do Luigi que, como já disse, era um cozinheiro ornamental, o responsável pela primeira omelete bizantina feita na vida real e não apenas em contos de terror. A revista O Babador fez uma reportagem especial sobre o prato.

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Olá, meu nome é Arlindo Schmeck. Tenho 47 anos.

Casei aos 18 com a filha de um potentado mujique que me flagrou sem as calças curtas quando, de um modo pouco ortodoxo, ensinava sua filha a lavar tomates. Escapei da castração exortando toda sorte de belezas da jovem russa, embora ela fosse totalmente vesga e deslustrada.

Dessa doce união colhi três rebentos que são a luz da minha vida, muito embora eu já viva no escuro há alguns anos. A família daquele serzinho que amei de modo tão genuíno me passou um golpe e hoje vivo debaixo de um lariço, torcendo sempre para que não chova. 

Trabalhei como almoxarife numa companhia de petróleo, ou eram piratas do mar – minha memória vive a me trair. Quero dizer que sua sequência de crônicas sobre como Gershwin rege do limbo o batidão carioca me ajudaram muito a me tornar um ser ainda mais abjeto.

Obrigado.

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No Seu texto de 25 de setembro de 1984, o senhor comenta que não se importa com a aparência externa de nosso regime político, mas que seria bom ter uma forma mais enxuta. Discordo. Se o senhor Tancredo Neves for eleito, como parece que o será, teremos enfim um motivo para comemorar. O senhor não sabe, mas a mística republicana, reforçada em toda a América Latina pelos eflúvios da “religião civil” de Rousseau, deu com os burros n’água. O fato é que, enquanto a América do Norte se tornava independente antes da revolução francesa, eu tinha dificuldades de encontrar um sal de fruta na pharmácia. Gostaria que o senhor soubesse que sofro muito com azia. 

Grato

Arthur Bonaparte, interno

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Foi muito bom conhecê-lo naquele encontro de catadores de remela anônimos no mês passado. O senhor provavelmente não me reconheceu. Eu usava óculos, nariz e bigode. Recomendações médicas. O senhor me disse que tinha dificuldade em conter o espirro e lhe dei duas notas de 5 reais. Lembrou agora? Não? Tudo bem. Pedi que o senhor contasse minha história numa de suas colunas e o senhor deve ter esquecido. Tudo bem. Eu fora um grande empresário do ramo têxtil que fali porque o público achou pernicioso demais camisas com uma só manga. Lembrou-se de mim? Creio que ainda não. Escrevo para pedir que reserve na sua agenda um dia para que eu possa assassiná-lo. Será tudo muito rápido. Prometo. Quarta é bom para o senhor?

Arthur Bonaparte, liberado

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Ao ler a crônica da semana com o título Outra Vez na América Espanhola, fiquei tocado com a altivez e a irreverência do colunista. 

Não é brilhante, isso é um fato, mas me fez recordar algumas boas coisas. Nasci em outra cidade que também se chamava Buenos Aires. 

Eu também morri. Uma moeda entalou na minha garganta. Maldito dólar sextavado. Vi o último sorriso de Beatriz. O hálito não era dos melhores. 

Pitágoras não deixou uma linha escrita. Era dislexo. Mas se disser que eu lhe disse isso, nego. Se estiver lendo essa carta, então o sábio Arquimedes terá acertado e a noite de hoje brilhará como nunca antes. 

Driblamos o grande roteirista do tempo e das coisas eternas. Você conhecerá tigres bem azuis e nas águas mitológicas do Aqueronte, fará pipi. Tenha uma boa vida.

J. L. B.  

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Sua última reportagem sugerindo que a alma de Renè Descartes transubstanciou-se no novo Citroen Xsara me parece um tanto crível. Sabemos que a metempsicose não só é real como também anima objetos de toda sorte, tais como as lâmpadas de citronela e a Marilia Gabriela. Mas dizer que ele só retornou para confrontar a antiga BMW 325 que, na sua, exclusivamente na sua opinião, é Immanuel Kant, é totalmente fora de propósito. Não há nada que desligue a ideia dos quatro preceitos lógicos desenvolvidos por Renè em seu Discurso Sobre o Método, da ideia desenvolvida por Kant, em sua crítica da Razão Pura. Acaso é distinta uma da outra? É? Acaso a razão não é a faculdade do incondicionado e seu limite para conhecer não é o fenômeno? Logo, sem função na área do conhecimento, a Razão pensa objetos, ainda que não possam ser conhecidos. 

Ao contrário do que você sugere, os dois transformers filosóficos ao invés de brigar, iriam invadir a Itália e destruir a fábrica da Fiat, onde sabemos que os mestres da patrística preferem reencarnar. 

Conrad Fehér Dagover, 

Presidente da Associação Internacional de Filosofia Automotiva

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