Guilherme Freire

Professor de filosofia

O Poderoso Chefão - Um Grande Clássico que consegue agradar todos os públicos

A intenção original da obra envolve a difusão de valores progressistas, mas uma espécie de chamado à beleza da tradição salta aos olhos do espectador.

Guilherme Freire

Entrando no universo do cinema, falo um pouco sobre a trilogia de filmes O Poderoso Chefão de Francis Ford Coppola. Sem dúvidas, um dos grandes clássicos do cinema.

Curiosamente, o filme possui um padrão simbólico duplo. São dois lados opostos que o filme pode tomar.

O escritor do livro O Poderoso Chefão, Mario Puzo, que deu origem ao filme homônimo, originalmente concebeu sua obra para transmitir uma mensagem substancialmente socialista. No início de sua obra, há uma frase de Balzac:

“Por trás de toda grande fortuna, existe o crime”.

O autor deseja mostrar como há uma relação entre o dinheiro e o crime.

O Poderoso Chefão se passa num contexto conturbado para a Itália e para os Estados Unidos. O país estava se preparando para viver suas primeiras eleições presidenciais desde a tomada do poder por Mussolini.

A Democracia Cristã disputava o poder com o Partido Comunista. O primeiro partido era acusado pelos comunistas de ter ligações com a máfia. Praticamente toda a política italiana tinha ligações com a máfia naquele período.

A disputa eleitoral ocorria num contexto de Guerra Fria. Diante disto, muitos americanos mandavam cartas para seus parentes na Itália recomendando que votassem na democracia cristã.

O Papa da época, Paulo VI, tinha muita esperança na Democracia Cristã, via o partido com bons olhos.

Mario Puzo em sua obra coloca de uma maneira muito pejorativa os imigrantes italianos que chegaram nos Estados Unidos e o próprio Papa Paulo VI. Estes elementos são apresentados de maneira muito clara.

No segundo filme, o protagonista Vito Corleone vive o sonho americano. Ele chegou na América para empreender, mas sua empreitada é associada exclusivamente ao crime.

No terceiro filme, o Papa Paulo VI é representado como alguém com relações com a máfia. Para o autor da obra, a Igreja está junto da máfia.

Essa crítica aparece também no primeiro filme. Michael no fim do filme mata os outros chefes de outras máfia, enquanto está batizando o próprio filho. A sobreposição de imagens indica essa hipocrisia religiosa que o autor enxergava.

A mensagem política fica ainda mais clara no segundo filme, quando Michael é intransigente com sua esposa Kay. Há uma gravidez indesejada e um aborto é sugerido. O filme busca transmitir a esta pauta com normalidade, como se fosse realmente o único caminho possível.

Com o desenrolar do enredo, o Michael apoia o governo de Fulgêncio Batista. Esta cena do segundo filme é capaz de sanar qualquer dúvida sobre o posicionamento político da obra.

A máfia italiana e a americana aparecem no filme apoiando o governo do ditador cubano. Isto é uma narrativa comum entre a esquerda latinoamericana. Inclusive foi um argumento evocado por Fidel para tomar o poder na revolução cubana.

O próprio diretor, Francis Coppola, era uma figura peculiar e irreverente, dirigia sem camisa e tinha umas ideias hippies. Isso endossa essa narrativa mais à esquerda.

Este fato não exclui o grande talento desse diretor.

O filme é extremamente fiel à cultura italiana. Os atores, o diretor, todos têm laços familiares com a Itália. Então os símbolos deste povo são bem fidedignos ao longo do enredo.

É curioso como, apesar de a mensagem central da obra ser progressista, o filme transmite uma espécie de amor pela tradição. Elementos que são inseridos com fim de ironia, mas que causaram nos espectadores uma admiração. Certamente peculiar.

Quando Michael Corleone está matando os outros chefes da máfia, enquanto batiza seu filho, as pessoas se impressionam não com a hipocrisia de Michael, mas com a beleza do rito.

cena-batizado
Cena do batizado no primeiro filme do Poderoso Chefão.

Vito Corleone é um homem violento, do mundo do crime, mas as pessoas ficam admiradas com o tanto que ele é um homem dedicado à sua família, procura constantemente seu bem.

Ninguém se choca que ele manda colocar uma cabeça de cavalo na cama de uma pessoa, mas ficam admiradas com seu esforço em ajudar um amigo ou um parente.

Curiosidade: a cabeça de cavalo usada no filme é real. Algo bastante impressionante. Por isso esta é uma cena tão marcante.

Marlon Brando (Vito Corleone) tinha total consciência da intenção política do filme, tanto que na cerimônia do Oscar que ele deveria ser premiado pelo Poderoso Chefão, ele manda a atriz indígena Sacheen Littlefeather negar o prêmio por ele.

Ela faz um discurso político depois de recusar o prêmio, foi um grande escândalo na época. Tudo isto motivado por uma visão política que perpassa O Poderoso Chefão.

O curioso (e até engraçado) é que é impossível os diretores controlarem a reação das pessoas. A história tem uma vida própria e os elementos de família, tradição e ordem que ela apresenta conquistaram o público.

O filme deseja transmitir a mensagem de que todas as fortunas são oriundas do crime, mas o filme acabou se tornando um sucesso comercial. Uma grande fonte de merchandising, com cartazes, produtos e diversos itens comercializáveis.

Os envolvidos na produção do filme, obviamente, enriqueceram-se com todo esse processo. Um detalhe um tanto quanto peculiar.

Analisando o final do filme, o Michael Corleone demonstra um arrependimento. Diante da morte, o protagonista reflete os erros de sua vida. Como tratou mal sua esposa Kay, as pessoas ao seu redor.

Esse arrependimento torna-se a temática do terceiro filme. Michael contempla sua vida, seus erros e ele tem um pequeno momento de redenção. Michael se depara com o quanto esse mal é algo pequeno face à morte.

Toda a história de corrupção do protagonista, sua jornada de descendência ao mal, findada por uma pequena redenção é uma verdadeira tragédia, no sentido do teatro grego.

Michael vai piorando enquanto pessoa, ao mesmo tempo que cresce em força, para no fim se deparar com a morte e entender o quanto boa parte de suas escolhas de vida serem vãs.

Há essa tensão no Poderoso Chefão. O que é o sucesso real? Ao passo que a morte se aproxima de Michael, ele percebe como esse dinheiro do crime é fruto da subtração de bens de outras pessoas.

Essa lição é realmente interessante na obra. Por mais que a reflexão original fosse relacionar o crime ao enriquecimento dos empreendedores americanos, essa mensagem tem algo que pode ser aproveitado.

Que o crime tem essa característica de parasita, de sugar algo dos outros para favorecer alguém, isto é um fato. Essa é a natureza do crime.

A natureza do crime é o oposto da natureza da família. Onde a pessoa entrega a outra um bem por caridade verdadeira.

Importante entender outro símbolo da obra que passa despercebido. O livro e o filme no original é “Il Padrino”, que em português seria “o padrinho”. Há uma ambiguidade nisso. Vito Corleone oferece ao sobrinho favores ilícitos, oriundos do crime, para favorecê-lo.

O Poderoso Chefão mistura essa relação familiar com o parasitismo do crime. Mario Puzo queria mostrar como as famílias podem estar envolvidas nesse mundo do crime.

Mas o filme acaba por evocar símbolos familiares para uma geração que estava perdendo todas essas coisas:

  • tradição;
  • honra;
  • cuidado com os seus.

É justamente devido a essa miscelânea de símbolos que O Poderoso Chefão é visto como um grande filme por grupos tão opostos.

Quem deseja ver O Poderoso Chefão como uma crítica aos males do capitalismo consegue captar essa mensagem. E quem deseja enxergar o oposto do que os autores pretendiam, consegue também.

A obra tem uma vida própria, que foge ao controle de seus criadores e acaba por criar essas ambiguidades. Por isso O Poderoso Chefão é um grande clássico, não se perde no simplismo e evoca inúmeros símbolos. Com as ferramentas de análise corretas, é uma obra muito interessante de se ver.