Flavio Morgenstern

Perguntar não ofende. Eu ofendo.

Nelson Piquet e o controle da linguagem: uma análise lingüista

Tricampeão brasileiro foi acusado de racismo por usar um termo, data venia, denegritório. Isto se sustenta na realidade?

Flavio Morgenstern

A estupenda (e estúpida) polêmica envolvendo a forma como o piloto tricampeão brasileiro Nelson Piquet referiu-se ao heptacampeão Lewis Hamilton (“neguinho”) gerou uma azáfama nas redes (“debate” é uma hipérbole que não cabe mais ao debate público mundial há muito) e envolveu até o Neguinho da Beija-Flor. Podemos tentar aumentar o nível da contenda com uma análise mais fria escorada na lingüística.

Boa parte da quizomba, como bem apontou o próprio Nelson Piquet, deveu-se à tradução dos termos. Traduzir “neguinho” para o inglês “nigger” é absurdo em todos os sentidos - e foi exatamente o que foi feito.

Ora, o século XX foi o século dos lingüistas (sorry, ainda uso trema, falo “GLS” sem “comunidade” e aceito dinheiro cash) não à toa: a lingüística estuda as línguas, e não a própria linguagem, como tenta fazer certo ramo da filosofia. Este é um caso em que é preciso analisar o uso dos termos dentro de uma comunidade lingüística, e não a interpretação forçada que lhes querem emprestar jornalistas, campanhas de difamação em massa e, claro, tuiteiros.

Apesar da origem etimológica comum, “neguinho”, na língua portuguesa atual falada no Brasil (tudo isto importa para a lingüística) nada tem a ver com “nigger”. O termo vexatório “nigger” é tão violento que é grafado como “n*****”, é chamado de “the n word”, aumenta automaticamente classificação indicativa de filmes se é usado (tal como o complexo “son of a bitch”, que está acima do português “filho da mãe” e abaixo do estupendo “filho da p***”) e é considerado o termo mais ofensivo da língua inglesa (nem sempre foi assim, naturalmente).

Nigger é uma palavra usada unica e exclusivamente para ofender, dentro da comunidade lingüística dos falantes de inglês contemporâneo. 

Mesmo em contextos nos quais tenta-se se dar um caráter irônico ou com outra camada de significado (poetas fazem isso muito bem, enquanto advogados e certos juristas-que-não-podemos-nomear costumam valer-se de tal artifício de maneira cretina), ainda assim, o substrato de fundo é trabalhar justamente com o caráter “proibidão” de nigger: tal como o vídeo que viralizou “nigga stole my bike”.

Nunca que um branco ou não-negro (sic) usaria o termo “nigger” em inglês para um amigo negro, a não ser justamente fazendo referência a como o termo é perigoso e violento. 

Aliás, lembra-se de como era dificílimo ver filme dublado envolvendo questões raciais - tipo “Mississipi em Chamas” com dublagem Herbert Richards no SBT? Simplesmente porque os termos não batem. A dublagem soava sempre artificial.

Cada “nigger” dito precisava ser traduzido quase como um sacrilégio, uma palavra tão proibida que faria uma multidão parar o que estivesse fazendo quando ouvisse. O problema é: não temos nenhuma palavra em português contemporâneo com essa característica, ainda mais fazendo referência a um conflito racial. 

Os tradutores usaram um artificial “crioulo” que não era usado por ninguém, mas fazia as vezes da ofensa (tal como o famoso “desgraçado” para substituir o portentoso “motherfucker”).

Situação completamente diferente do termo “neguinho”. Em primeiro lugar, o diminutivo no português tem não apenas o caráter de falar de algo pequeno (reparou que ninguém tentou acusar Piquet de ter tentado tratar Hamilton como alguém “baixinho” ou de pouca importância?), e sim também como uma forma carinhosa, irônica ou puramente engraçadinha - aliás, é o uso do diminutivo no próprio vocábulo “engraçadinho”.

Voltando ao “crioulo”, o termo é usado de maneira “científica” quando falamos, por exemplo, das “línguas crioulas". O “crioulo” era um escravo nascido na América - e, por isso, muitas vezes, tratado como alguém “boçal” e menor por outros negros, já que não tinha laços culturais com o antigo nem com o novo continente. 

Curiosamente, portanto, tentar traduzir “nigger” por “crioulo” acaba fazendo referência a uma ofensa entre negros, ao contrário do original.

Quer piorar? Claramente (!), “nigger” e “negro” possuem a mesma origem. Mas, em português, um branco chamar um negro de “preto” é que soa mais ofensivo do que “negro”. Já em inglês temos exatamente o inverso: é normal falar “black”, enquanto “nigger”, ou mesmo um termo defasado como “negro” (pronuncia-se como “nigro”) é que são os ofensivos.

Adivinhe a mágica que acontece quando você força a tradução de “neguinho” para “nigger”, ainda mais sabendo que o inglês não tem um diminutivo com caráter de carinhoso, irônico, debochado ou despretensioso, como o fez Nelson Piquet? 

Se o termo fosse “pretinho”, apesar de ser fácil de traduzir (“little black”), o efeito seria oposto: pareceria desprezo pela cor de pele em português, enquanto seria extremamente tranqüilo em inglês.

Uma tradutora australiana disse certa vez que sua palavra preferida em português era “orelhudinho”, como seu cachorro: que outra língua permite que você faça referência ao tamanho da orelha de um bicho, ao mesmo tempo em que usa um diminutivo, para dizer que ele é pequeno ou, oh, ironia, que tem apreço por ele?

Para isso serve a lingüística - ou deveria servir, se lingüistas não fossem os primeiros ideólogos do século XX: para analisar o uso, não apenas a abstração que fazemos na gramática.

É só analisando o uso que podemos entender por que o termo “velho” pode ser algo extremamente objetivo falando-se de um terno, e absurdamente ofensivo referindo-se a um parente ou a uma posição política. 

Ou porque “short” em inglês significa “curto”, e em português falamos sobre um “short curto” sem ser tão pleonásmico quanto parece: porque estamos analisando o uso dado por uma comunidade, e não uma definição matemática estanque - o que não existe na seara das palavras. Exemplos abundam.

E é exatamente por isso que o controle de linguagem, com o uso de novas abstrações como “discurso de ódio”, “homofobia”, “transfobia” ou os vários usos que se quer dar aos termos “racismo” e “machismo”, é o maior perigo já inventado pelos engenheiros sociais e controladores de multidões: porque nenhum discurso, ainda mais uma palavrinha só, vai ser perfeitamente uma coisa ou outra. 

Vai restar sempre o último recurso: forçar interpretações (notou que um órgão cujo objetivo é dar interpretações virou plenipotenciário no Brasil, como nem Hitler o era no Terceiro Reich?) e acusar intenções malévolas a quem você nem conhece. 

A estrutura está montada para a tirania: a turba enfurecida com tochas prontas para destruir aquele que pareça ofender a ordem pública (antes eram “os bons costumes", hoje é quem pareça “racista” ou “lgbtqypqpabc+fóbico”) e um órgão burocrático não-eleito feito para “interpretar” se você só usou um termo carinhoso - ou engraçadinho - ou se você é o novo Heinrich Himmler. 

O próprio Neguinho da Beija-Flor deu uma explicação bastante técnica para quem não é da área: “neguinho” não tem ofensa nenhuma - mas a situação seria bem diferente se o termo fosse “negrinho”. Porque “neguinho” é usado de maneira carinhosa em todo o histórico recente da língua portuguesa brasileira: aliás, nós, que viemos da periferia, sabemos muito bem disso. É usado como “cara”, “mano” ou “parceiro”, independentemente de cor da pele. Já o termo mais “técnico” “negro” acompanhado de diminutivo teria como referência imediata a cor da pele tratada com menoscabo.

Um post do Neguinho da Beija-Flor em 2020 foi censurado pelo algoritmo do Facebook. Afinal, usava o termo… “neguinho”. Este é apenas um dos terríveis problemas civilizacionais de se tentar controlar a linguagem com ideologia. E com algoritmos matemáticos, tentando imitar o controle político por uma ideologia.

Não há este uso para “black man” ou “black dude” em inglês. Daí ficou mais fácil aos manipuladores forçarem um suposto racismo onde só há a boa e velha fala sem controle e sem censura dos anos 90. Ou até mesmo dos anos 2000. Como nos deixamos ser tão totalmente controlados em tão pouco tempo!

O próprio conceito de “racismo” foi espalhado no Ocidente pelos trotskystas, para acusar qualquer discordante de parecer nazista. É simplesmente um absurdo o que é feito com o termo hoje para associar desafetos a uma discriminação horrenda. 

A Rede Globo (chamada por Nelson Piquet de “Globo Lixo”) chegou a chamar Piquet de “racista”. 

Um termo que, sem análise de uso, parece quase “técnico” é o atual “bolsonarista”. Seria apenas “eleitor do Bolsonaro”, se o termo também fosse usado para petistas. Mas você nunca ouviu falar em “jornalista petista”, “blogueiro petista” (esse já denegritório no substantivo), “milícias petistas”, nem em “fake news petistas”. 

Reparou como o termo “bolsonarista” é usado unica e exclusivamente para ser associado a coisas negativas, que pareçam fanáticas, irracionais e exageradas? Cadê o inquérito contra petistas? Cadê as investigações com buscas e apreensões e quebras de sigilo contra petistas? Nem a Lava Jato era descrita na mídia contra a corrupção… petista.

Já vimos a manipulação na fuzarca atual no jornal Estado de Minas, que soltou a manchete “Bolsonaristas citam Neguinho da Beija-Flor para defender Piquet em racismo”. Note como o vocábulo “bolsonaristas” é usado em uma posição na qual você nunca viu o termo “petistas”. E a construção “defender Piquet em racismo” já tenta acusar tanto os ditos bolsonaristas quanto Nelson Piquet de racismo. 

E curioso como bastou Piquet declarar voto em Bolsonaro para ter sua reputação constantemente atacada - desta vez, até com manifestações de repúdio da FIA de cada um dos pilotos do grid.

Analisando o discurso em uso é que percebemos como a manipulação lingüística é feita. Hoje todos estão prontos para encontrar “racismo” e várias “fobias” em todos os lugares sem nem precisar criar leis - só acusações em massa. Ironicamente, foi exatamente como os nazistas subiram ao poder e puderam esbulhar as leis para fazer perseguições judiciais cada vez mais severas aos seus desafetos - só que o alvo deles era diferente.