Marcos Ruppelt

Aspirante a escritor e co-host do Red Pill Podcast.

Afinal de contas, Marvel é ou não é cinema?

Por que o cinema comercial continua sendo tratado como algo inferior ao “cinema de arte"?

Marcos Ruppelt

Ou, por que o cinema comercial continua sendo tratado como algo inferior ao “cinema de arte"?

Em uma entrevista, o cineasta Martin Scorsese, gênio do cinema por trás de filmes como Taxi Driver (1976), Os Bons Companheiros (1990) e O Lobo de Wall Street (2014), foi questionado se assistia aos filmes da Marvel. Sua resposta gerou polêmica pois ele afirmou que não tinha interesse nos atuais filmes de herói por não se tratar de "cinema".

"Honestamente, o mais próximo que consigo pensar deles, por mais bem feitos que sejam, com atores fazendo o melhor que podem sob as circunstâncias, são parques temáticos. Não é o cinema de seres humanos tentando transmitir experiências emocionais e psicológicas a outro ser humano."

Francis Ford Coppola, diretor de Apocalypse Now (1979) e da trilogia O Poderoso Chefão, reforçou a crítica ao afirmar que Scorsese tinha sido bondoso, pois os filmes de heróis eram, em sua maior parte, desprezíveis.

Depois da polêmica ter sido instaurada, Scorsese explorou profundamente sua tese em um belo artigo de opinião que poucas pessoas leram.

Por mais antiga que possa parecer a discussão, boa parte da sociedade assiste aos filmes e reage emocionalmente a eles sem entender muito bem o que realmente é o cinema.

E isso não é um problema.

Antes de racionalizar, aprender ou evoluir com um filme, a Sétima Arte é uma experiência estética, individual e emocional.

Agora, se você quer participar do debate e defender com unhas e dentes aquilo que acredita, eu convido você a dar um passo para trás e relembrar alguns conceitos.

O que define se um filme é arte ou cinema "de verdade"?

Coppola defendeu em sua entrevista a tese de que filmes que "não se arriscam" não são filmes de verdade. 

Scorsese trouxe para sua tese a noção de filmes não podem ser "produtos fabricados para consumo imediato", é necessário a visão do artista (a boa e velha teoria do autor - discussão para outro artigo) e que você precisa fugir das fórmulas para conseguir expandir a imaginação do espectador.

Em resumo, o que eles querem dizer (e em até certo ponto, têm razão) é de que um filme precisa estabelecer uma relação inventiva com a linguagem.

Um bom filme usa de linguagem cinematográfica para transmitir a ideia, a intenção cinematográfica do seu diretor/produtor/roteirista.

Cinema não é ilustração de roteiro. E também não é algoritmo para consumo.

A arte exige mais. E esse algo a mais é usar de elementos técnicos (fotografia, iluminação, som, mixagem, cenografia, atuações…) para concretizar uma ideia.

Ou seja, um filme "de verdade" não é aquele que tem uma "fotografia bonita" ou uma "boa atuação".

É aquele que pega esses elementos de linguagem isolados, unifica em um estilo e concretiza uma ideia.

E não precisa ser nada cabeçudo, cult ou inteligentinho.

Se o seu filme é "Vingadores", ele também tem uma ideia, um estilo, um intuito artístico.

Mas está nas mãos do diretor concretizar isso de uma forma inventiva e não recorrer a fórmulas burocráticas ou protocolares.

O cinema comercial, muitas vezes, é superior ao cinema de arte.

Muito antes da Marvel transformar um subgênero da fantasia (heróis) em um fenômeno comercial global, grandes diretores já fizeram do blockbuster um cinema respeitável.

Steven Spielberg conseguiu com Contatos Imediatos de Terceiro Grau, Indiana Jones, E.T. e Jurassic Park transformar uma sessão pipoca de cinema em um cinema autoral.

George Lucas fez o mesmo com Star Wars.

E mais recentemente, uma franquia como Missão Impossível reuniu diretores talentosos (Brian de Palma, John Woo e Christopher McQuarrie) para transformar filmes de ação excêntricos em experiências de cinema divertidas e inteligentes.

O mesmo vale para Velozes e Furiosos e John Wick, franquias que parecem um absurdo ao cinéfilo tradicional, mas sempre carregam em seus filmes uma clara ideia cinematográfica que não limita a diversão do público e não tenta parecer inteligente demais.

O cinema nesses casos é comercial, de gênero e de grande orçamento. 

O que torna ele elogiável não são essas características, mas a relação que os diretores estabelecem com a linguagem em seus filmes. 

Se nos emocionamos com o fim da infância em E.T., é porque Spielberg maneja os elementos de linguagem do filme de uma forma muito elegante para transmitir a sua ideia.

O mesmo acontece na jornada de Luke Skywalker. A trilha de John Williams não está lá como um elemento isolado, mas como uma criação artística pensada para aquele mundo, aquele personagem e aquelas situações.

É um cinema, muitas vezes, superior ao que conhecemos como "cinema de arte".

Cineastas de nicho como Xavier Dolan, Gaspar Noé e Kleber Mendonça Filho, em muitos casos, usam seus filmes para parecer inteligentes. Os elementos de linguagem, no caso, não estão a serviço do filme, mas do ego de seus criadores. 

As abordagens costumam ser mais apelativas e parte das histórias e personagens são mal desenvolvidos, já que o filme não quer concretizar uma ideia, mas parecer artístico, bancar algo que na essência, ele não é.

Se existem fórmulas prontas para filmes comerciais, também existem fórmulas prontas para filmes de arte.

A diferença é que, alguns cineastas conseguem esconder melhor esses atalhos pelo bom relacionamento que tem com a imprensa, com seus pares e também por ser do time político que agrada a maioria.

Qual o real problema com os filmes de herói contemporâneos?

O grande trauma do blockbuster moderno é a relação das franquias e marcas com seus fãs.

Ao definir um caminho visual e textual para um filme, a partir das expectativas dos fãs, você naturalmente está abrindo mão de "fazer cinema", pois o fan service está afetando nas escolhas de linguagem do filme.

O problema de boa parte dos filmes de herói é restringir as possibilidades narrativas de um filme a um mundo seguro e confortável. 

É transformar uma questão artística em matéria de aprovação social.

Isso pode funcionar no curto prazo, como um efeito de droga passageiro, mas acaba por destruir a relação do público com franquias, vide exemplos recentes da nova trilogia Star Wars, o fracasso de Liga da Justiça e, até mesmo, a falta de interesse do público pelos seriados recentes da Marvel.

Em suma, um filme não irá funcionar de forma isolada se seu único objetivo é agradar o fã.

Ele até pode fazer isso, desde que concretize uma ideia e funcione também para quem não é apaixonado por bonecos.

Christopher Nolan fez isso ao mostrar o trauma americano do 11 de setembro na anarquia de O Cavaleiro das Trevas (2008). O herói de Christian Bale sai de cena, pois está lá a serviço da cidade e não a serviço de seu ego ou dos interesses políticos dos produtores do filme.

Matt Reeves também acabou de fazer um bom filme de herói ao mostrar um Batman em começo de carreira, atormentado pelo passado, introvertido, frio e melancólico. 

O problema de Gotham é o problema da sociedade moderna, da falta de confiança nas pessoas e nas instituições. E o herói de Robert Pattinson incorpora isso, não confiando nem mesmo em Alfred.

E o melhor de tudo: a Marvel também fez.

A Marvel já produziu e entregou cinema de primeiro nível em meio a uma insana escala industrial de produção.

Corrigindo o título desse artigo:

O que na Marvel é cinema e o que não é?

Disclaimer: vi tudo do querido Marvel Studios até Vingadores: Ultimato (2019). Incluindo as séries de TV.

Desde 2008, foram mais de 30 filmes. E no período de 2016 a 2019 (a famosa Fase 3), mais de 11 películas num intervalo de três anos!

É inegável que a maior parte dos filmes rejeitam uma visão mais autoral.

Exemplos disso são os diretores que foram dispensados pelo estúdio devido às famosas "diferenças criativas".

Patty Jenkins, diretora de Mulher Maravilha, não conseguiu finalizar Thor: O Mundo Sombrio (2013). Edgar Wright foi dispensado na produção de Homem Formiga (2014). E Ava DuVernay caiu fora de Pantera Negra (2018).

A formação do MCU não é mérito de um diretor, mas o projeto de uma empresa, encabeçado por um dos maiores produtores de cinema do mundo: Kevin Feige.

Boa parte dos filmes foram feitos propositalmente com o objetivo de preencher espaço, dentro de uma fórmula, dentro de um universo.

É o que Coppola e Scorsese não chamariam de cinema.

Mas, há sim, cinema na Marvel. 

Há filmes que merecem elogio e se encaixam na categoria de "cinema" pretensiosamente orquestrada nesse texto.

Filmes que mesmo dentro de um universo bem tecnocrata, exalam criatividade, se arriscam e conseguem estabelecer uma relação criativa com a linguagem que agrada aos fãs e funciona também como filmes isolados.

  1. Capitão América: Guerra Civil (2016)

O herói patriota se transforma num ancap anti-sistema para enfrentar o bilionário sedutor protegido por organismos globais e recheado de uma preocupação altruísta com o mundo.

Uma simbólica e histórica reunião de heróis capturou perfeitamente o conflito contemporâneo do globalista que quer salvar o mundo contra o indivíduo sólido em seus valores.

  1. Guardiões da Galáxia (2014)

O filme mais despretensioso do estúdio transformou heróis de quinto escalão em figuras rentáveis fazendo uso de música dos anos 80 e convenções do gênero da comédia.

Nem mesmo o produtor mais otimista esperava tamanho sucesso. 

E isso passa diretamente pela originalidade de James Gunn como diretor do projeto, alguém que viu na Ópera Espacial uma forma de explodir os limites do humor e do combate físico nos filmes do estúdio.

  1. Vingadores Guerra Infinita (2018)

O melhor filme da Marvel nos cinemas é uma metáfora sobre a própria fórmula tão criticada do estúdio.

O filme constrói o maior vilão de todos, um Deus intergaláctico humanizado que no fundo quer ser um fazendeiro e viver uma vida pacata.

Ele tem a possibilidade de destruir metade das vidas no planeta com um simples estalar de dedos. 

O poder de Thanos contrasta com a fragilidade da fantasia, a efemeridade daqueles heróis.

Se eles foram tão importantes na vida de alguns fãs durante anos, podem num simples estalar de dedos (ou no processo de amadurecimento do público), serem esquecidos.

Como bem explicou Arthur Tuoto, Guerra Infinita é, no fundo, uma crítica à tecnocracia do estúdio, de todos os filmes de super herói, que naturalmente serão deixados de lados pelo público.

Essa ideia não está solta no filme.

Todos recursos visuais e narrativos são para mostrar a fragilidade de tudo que a própria Marvel construiu. 

O apego que o público possui com aquelas figuras é algo passageiro, pois o cinema é isso também, um certo escapismo, um refúgio temporário.

Vingadores: Guerra Infinita é um ótimo exemplo de como o cinema blockbuster consegue entregar filmes de qualidade para o grande público (e convencer eles a assistir 3 horas de filme sem ficar reclamando no twitter).

Muitas vezes, o filme pipoca nos entrega uma qualidade que não encontramos no “cinema de arte".

Se há questões envolvendo distribuição concentrada nos filmes de heróis ou falta de interesse do público por outro tipo de cinema, isso não cabe à Marvel resolver.

O problema central é que filmes autorais como Guerra Infinita ou Cavaleiro das Trevas aparecem com baixa frequência e, no meio disso, somos expostos a porcarias feitas em escala industrial que se ancoram no amor dos fãs ao material original e muito pouco de cinema tem a oferecer.

Se os estúdios passarem a confiar mais nos diretores por trás dos projetos e menos nos algoritmos, poderão acabar transgredindo as barreiras que criaram para seus próprios filmes.

E eu espero, profundamente, que Warner, Sony e Marvel já tenham percebido isso.