Flavio Morgenstern

Perguntar não ofende. Eu ofendo.

O estupro é parente do homicídio, não do cavalheirismo

Chamar um estupro de "machismo" e, na frase seguinte, chamar pela mesma palavra uma piada só nos afasta da verdade.

Flavio Morgenstern

Há uma crença corrente na sociedade brasileira: a idéia de que exista uma coisa chamada “machismo estrutural”, que geraria uma “cultura de estupro”. Seria a explicação abstrata, acadêmica e gourmetizada para casos de crimes que chocam qualquer um, como a grávida estuprada por um anestesista durante um parto por cesárea no Rio de Janeiro.

Apesar de pomposa, esta crença gera uma distorção esquisita: seria um ente abstrato, o “machismo”, que causaria estupros. O pior é que este mesmo termo - “machismo” - é utilizado para descrever fatos distantes de uma violência absurda: chamamos de machismo a maior média salarial entre homens, a proibição do assassinato intrauterino de bebês, um homem explicar algo para uma mulher ou abrir a porta do carro.

Ou seja, uma abstração porosa, de definição imprecisa e vaporosa como “machismo” parece ser o sujeito agente em várias situações completamente distintas, como “o machismo gera estupros de grávidas por médicos” e “o machismo impede que tenhamos 50% de mulheres CEO de empresas”, ou “furunfei e engravidei, e não consigo matar meu filho para continuar minha vida normal por conta do machismo”. 

Se quer uma boa definição da modernidade, esta ajuda bastante: a sociedade guiada por teorias que soam acadêmicas, complexas e danbrownianas, mas cujo verdadeiro público-alvo são as massas.

São palavras cheias de “-ismos” e “-fobias”, que basicamente dizem “todos os problemas da sua vida são culpa de haver uma moral pública que não nos permite acasalar em público a cada 20 minutos, e ainda ganhar por isso”. 

Parece chic dizer algo como “machismo estrutural”, admita. Mas é na verdade tema de conversa do Saia Justa, amigx. Um termo a ser repetido indeliberadamente por funkeiras e por 11 em cada 10 blogueiras com cachorros veganos e trejeitos como “tipo, se o rolê não tiver tipo um carinha foda que tipo me deixe sair com outros caras tipo eu já nem respondo no Zap, porque é machista, tá ligado?”

E assim, aquelas palavrinhas que se parecem tão high class são deslindadas a olho nu, e o que é revelado são apenas… modismos. Reducionismos de fácil repetição para o vulgo. Nada de inteligente e pesquisado e profundo, mas justamente fast-food pseudo-intelectual para servir como bordão irrefletido pela manada.

É com este tipo de cacoete - perfeito para dar voto para ditador corrupto porque o outro lado é "machista" - que hoje vemos pessoas se achando extremamente inteligentes e modernas por descrever um estupro com o mesmo termo que forçam para se referir a abrir a porta do carro para uma mulher. E achando que compreendem mais da realidade com isso, e não menos.

E taca-se tudo no bolo informe e monstruoso do "machismo": de fazer escova no cabelo a não termos transexuais bilionários (também deveriam questionar por que não existem transexuais de 80 anos, mas parece que essa pergunta incomodaria um pouco), de o padrão de beleza envolver fazer academia até a disparidade estatística de salário entre homens e mulheres.

Ignora-se, por exemplo, que homens começam a trabalhar mais cedo, são maioria em profissões técnicas e nas exatas, além de escolherem profissões perigosas. Também não fazem a conta de que homens pagam pensão e trabalham para pagar o auxílio-maternidade (ou ele não existiria). E que mulheres só trocaram os filhos pelos chefes porque a Primeira Guerra Mundial matou a maioria dos pais de família da Europa, o que as levou a abandonar os filhos e tornarem-se empregadas a contragosto. Mas essa é uma explicação muito mais difícil do que repetir bonivamente o bordão do marketing: "machismo".

Tudo para criticar a tal "moral" e substituí-la por outra. Assim, um crime não é mais algo a ser punido por homens preparados para o combate, e sim algo estrutural (como adoram essa palavra!) da sociedade. Se alguém faz o mal a outrem, é a sociedade que precisa mudar, e não quem faz o mal.

É a troca da confissão e da punição pela revolução. É a culpa coletiva. É a setorização do mal.

Ora, se a culpa do estupro é do "machismo" (ou seja, de tudo o que se considera negativo em homens, e logo começa-se a culpar o que é positivo com o mesmo termo), então basta-se acreditar que cortar todos os trojuncos do mundo acabará com os estupros. 

Mas aí, sempre a feminista vai ter um pai, um namorado, um amigo gay que juram que nunca estupraria ninguém. Ou seja, nem todos os trojuncos "sistêmicos" vão gerar mais segurança. Ora, então a culpa é de alguns homens, e não de todos, certo?

O mesmo com as armas: acaso um revólver nas mãos de uma feminista ou um amiguinho delas geraria necessariamente um genocídio? Senão, o problema não está nas armas, mas que algumas pessoas são más - e não "a sociedade" ou outros entes abstratos, genéricos, plurais e indefinidos (sempre lidam com termos com estas características).

Não dá para chamar o anestesista estuprador de uma grávida parindo de "machista", e na linha seguinte dizer que explicar trigonometria para uma mulher é "machismo" - ou se oferecer para pagar conta (ou dividir - alguém sabe qual dos dois é machista?).

Pode apostar que as mesmas pessoas da culpa coletiva - ou seja, os seguidores de modinhas feitas por marqueteiros pra vender tralha feminista e as revolucionárias fazerem o capitalismo girar - são as mesmas que acreditam em "encarceramento em massa". Que o Brasil "prende demais". Que a função "social" da pena é a… reintegração na sociedade.

Vamos perguntar então, longe da abstração para estúpidos que acreditam em Foucault e diante da realidade concreta: você acha que só devemos punir o anestesiologista estuprador até ele ser reintegrado na sociedade?

Reparou como toda a logorréia de "-ismos" e "-fobias" transparece-se como estulta que é, ao ser colocada diante de um simples caso concreto? 

Onde estão as feministas gritando por mais tempo de cadeia? Por castração química? Por punições exemplares?

Pior: o estupro é parente do assassinato, não de deixar a mulher ficar com o único guarda-chuva. O estupro é parente do tráfico de drogas, que muitas feministas financiam - ou você acha que há mais estupros no Opus Dei ou num baile funk?

Quem rouba tem mais chances de estuprar um dia. Quem estupra tem mais chances de matar. É isso que chamamos de "mal". É isso que a tal "moral cristã" quer combater. E justamente esse parentesco que não é mais notado pela inteligência de feministas e progressistas: porque acreditam em palavras da modinha, sem notar as conseqüências de atos concretos.

Fiodor Dostoievsky, que flertara com o socialismo e vivia no auge do niilismo russo, já havia percebido o problema. Ao pensar em criar um romance psicológico sobre um assassino, quase uma confissão em primeira pessoa, acabou criando a primeira parte sem psicologia nenhuma: apenas a descrição fria e crua de um jovem cheio de "meias idéias", que só servem como justificativas chãs para seus ímpetos. 

Dá para acreditar que Raskolnikov está sendo um grande filósofo e revolucionário ao dar uma machadada num crânio no começo de Crime e Castigo, ou parece apenas um rompante mal ajambrado?

Curiosamente ninguém quer associar comunismo, socialismo e revolução com o gulag, os extermínios por fome, os genocídios de milhões (inclusive por razões étnicas, como os de Slobodan Milošević). Mas associar um estuprador com alguém fazendo piadas com estética feminina está liberado.

Não é mais fácil, mas é bem mais profundo e verdadeiro pensar no mal como mal: como o impulso diabólico ao qual só se consegue vencer vivendo pela graça - e justamente por aquilo que feministas chamam de "moral ultrapassada".